Terça-feira, 30 de Novembro de 2004
nas águas profundas
a espera cega o regresso
ausente
não há palavras
nem cores que adocem os olhos
nem trilhos de cheiro sincero
nada é como a demora luminosa
do parto
nada fica à deriva
quando o peso da luz branca cai
como nódoa intocável
na linhagem da sorte
são cestos de lama
lodo em confronto inevitável
com verde arruda e murta da mais fresca
Segunda-feira, 29 de Novembro de 2004
Qual taberna vertendo
caudaloso rio de vinho.
Qual Príapo arando terra alheia,
colhendo impacientemente os doces frutos
da Grande-Mãe-Natureza.
Assim estava eu.
Meio dormindo. Semi-acordado.
Quando me assaltou a urgência de estar chegado ao teu corpo.
Sexta-feira, 26 de Novembro de 2004
houve tempo
em que não duvidava da primavera
era luz
muita luz que de repente caía do céu
as paredes faziam-se mais brancas
e rio mais azul
as pessoas mais alegres
e o ar mais quente
houve tempo em que a primavera surgia
marcada no tempo
prenhe de cheiros que a luz rebentava
e de cores que se davam ao engenho dos olhos
houve tempo em que não duvidava da Natureza nem do Homem
houve tempo
Quinta-feira, 25 de Novembro de 2004
ondulantes
serpenteiam os eunucos pela cidade
as palavras já borbulham como tambores de guerra
já se distribuem as indulgências
pacientemente guardadas na bagagem de mão
indiferente ao estro prosopopeico
cultivo nos meus alegretes
não sei se nojo
não sei se pena
alegrias não
Segunda-feira, 22 de Novembro de 2004
ancorados
os meus olhos adormecem
rodeados de cheiros e sons perdidos
pressinto alegrias e amarguras no cais
desprendem-se regressos e despedidas
e os prantos são nascentes que não correm
só porque vão caindo desencontrados
quando o barco se faz ao horizonte
com a cabeça entre as mãos
sentados
todos contam as horas e sentem o tempo
ah
são tantas as mágoas que vejo mesmo sem ver
ternura nos que partem sem querer partir
saudade nos que ficam sem querer ficar
1
deixa-me acordado no restolho macio
até que e o outono encharque os torrões
e a chuva solte o cheiro da terra
2
nas vigílias
as tristezas são insónias da vontade
e a refulgência fátua das mágoas
ao espelho
é tão messalina quanto mãe
Sexta-feira, 19 de Novembro de 2004
são já poucos os prodígios que hoje me batem à porta
e já nem me sobressalto quando cheiro raridades
consigo ainda expor sorrisos
quando corro a fechadura na esperança de resolver a sede
sede
sede inusitada de que não vejo o fim
Quinta-feira, 18 de Novembro de 2004
desde sempre
que no diário das marés
Neptuno escreve as arrelias do mar
a espuma
as conversas com o vento
as ondas uma a uma
Quarta-feira, 17 de Novembro de 2004
arámos o mar e o vento
e no deserto deixámos sinais
enquanto a ventania esteve ausente
sinais
procurá-los nas dunas é como guardar o rasto da chuva
e desvendar o mistério do cheiro húmido
das tempestades tropicais
Terça-feira, 16 de Novembro de 2004
abraçar-te assim
tanto quanto os meus olhos podem ver
ao redor da luz
branca que te protege
abraçar-te assim
tanto quanto
os meus braços conseguem
conquistar-te o corpo
e a minha voz
escoar o caminho dos teus passos
abraçar-te assim
caio de sono a teu lado
sonho com a tua voz
ouvida através do peito que me davas
doces
doces como leite são as memórias
Segunda-feira, 15 de Novembro de 2004
Diz-me.
Diz-me quanto vale um sonho.
Porque eu cavo e busco na terra
e só tenho as mãos cheias
dos mistérios de que sou feito.
Senhora dos arcanos e da parição do mundo,
no teu colo as máquinas do medo não têm aconchego.
Diz-me.
Diz-me quanto vale um sonho...
zaranzei toda a noite
até que me perdi nesta tristeza que me acossa
os dias e esconde o sabor das coisas simples
eu sei da tristeza quando escrevo com saliva
no vidro palavras nomes e oráculos auspiciosos
que escorrem com a gravidade
como se estivessem de luto
dou por ela quando nem o banho diário
que já foi baptismo me converte pela manhã
aguardo melhores dias
aguardo
Quinta-feira, 11 de Novembro de 2004
No outro lado do oceano,
onde não governa a areia mas o verde domina,
quem habita a floresta tem dos elementos o temor que eles merecem.
Da terra têm notícia de um útero imenso
e do firmamento um espelho
onde todos os pirilampos à noite se reflectem.
Tantas formas de ver,
outras tantas de sentir e de buscar.
Onde ficamos?
Quarta-feira, 10 de Novembro de 2004
I
sei de um surrealista que traz uma cerejeira ao ombro
e mora numa corda de roupa
na cerejeira todos os dias principiam frutos
que à noite regressam às flores
II
a mulher do surrealista toca um piano que ladra
ouvem-se matilhas de acordes
quando dá concertos em família
III
o casal tem dois filhos
o segundo nasceu antes do primeiro
e ladram os dois ao piano da mãe
Segunda-feira, 8 de Novembro de 2004
disseste-me
que as paixões são azenhas de maré
excessos no meio dos oceanos
que afluem como rios a todo o lado
e a nenhum
e eu
porque sei que todos os mares desaguam
ao largo numa foz imprecisa
esperei que as vagas me devolvessem
na praia
a espuma e o lastro dos meus desmandos
numinosos degraus
de um zigurate elevado ao Seu encontro.
quem os sobe?
numinosos terraços
sempre mais longe.
alturas a que Ele nem sempre desce.
à imagem e semelhança de quem?
não!
não teria feito o Homem livre
sem condená-lo à felicidade.
sentado lá cima
onde não há vento que não chegue do sol
alguém entorna estes prodígios
e enquanto a música desce
podes reter-te comigo a recato das vozes
porque ambos tememos que nos desordenem
o som genuíno dos dias
e queremos guardar o sublime e fugaz conforto dos sons
sem que ninguém os desalinhe ou corrompa
Sexta-feira, 5 de Novembro de 2004
I
lanço os braços no algodão do nevoeiro
encontro suspensos os dias
desmedida a escuridão das noites
ambos sabemos que é nos caminhos nocturnos da vontade
que emergem impacientes luminárias
esculturas feitas de nada
II
antes de escutar as linhas do teu corpo
quero imaginá-lo a correr
solto
continuamente perdido nas ruas marginais da cidade
só depois as bandeiras poderão desprender a tinta
turvar o encanto do vento transparente
III
colorido
colorido só o contorno dos teus lábios
furtivos à proximidade dos meus e ao rigor da palavra
Quinta-feira, 4 de Novembro de 2004
Aproxima-te da vida
como se ela fosse o étimo das paixões
Chega-te e lambe a cara com os dedos
que os sentidos são cinco
tantos quantas as portas do farol
E não meças o tempo
porque o teu rosto leva rugas
que as tuas mãos não podem lavar
Quarta-feira, 3 de Novembro de 2004
quando os olhos se abrem
de manhã
não há luz que penetre mais no corpo que a primeira
incêndios momentâneos de cor entregam-nos o mundo
de regresso
e dissolvem-nos a ingenuidade
que o quentinho da cama nos deu
não sei não
porque acontecem à noite
no escuro
os sonhos quase todos
Terça-feira, 2 de Novembro de 2004
o etéreo não se decompõe com o tempo
imputrescível
ergue-se em crescendo no silêncio de todas as fracções
em que a luz diária se divide
dizem que a música é feita de murmúrios
sons ordenados por tipógrafos sensíveis
dizem que os arabescos são nómadas
sedentos de tâmaras e de leite
o itinerário dos gestos de quem os desenha
pode não seguir o rasto dos orifícios das flautas
nem tampouco o lamento das ocarinas deixadas ao vento
mesmo assim
são de fios ciciados
são de filigranas de linho
são de gergelim doce
os caminhos da escrita
os torvelinhos de areia também cinzelavam as nuvens
e desenhavam com elas contornos sem formas definidas
a poesia das paredes brancas cegava
porque os perfis da sombra eram margens de um rio de luz
agora os rumores da chuva já não contentam o cio da terra
e os pregões que ouço na cidade improvisam impaciências
já não há papoilas
já não há papoilas
Segunda-feira, 1 de Novembro de 2004
no escaparate
tenho os evangelhos longe dos autos de fé
arrumei-os com os catecismos
justamente nas prateleiras mais castas
vigilantes
por cima a patrística e por baixo a escolástica
em frente os delírios apócrifos
e as canonizações alquímicas
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egea a´errsaietd
opres´tntcd.seria
a´~rrintsesaioae
aosaseasaers,ra
1
sedento
abri a torneira do fontanário.
saíram turbilhões de letras, sinais e números,
que me encharcaram as mãos de segredos.
2
a esperança do trigo é cair à terra,
a do pólen correr ao vento.
que desejo terão as letras?