Domingo, 30 de Janeiro de 2005
as asas que tenho
são as palavras que digo
com elas voo
com elas corro
as asas que tenho
são os silêncios ocultos
que procuro nos sentidos
com eles me deito
e com eles durmo até que me levanto
Sexta-feira, 28 de Janeiro de 2005
Celebrarei todas as virtudes
até que o tempo me diga se a erosão do sagrado
tem a dimensão dos segredos que vão caindo
Celebrarei todas as virtudes
as profanas e as conventuais
as dos outros e também as minhas
Até que a minha liberdade se cale
Celebrarei todas as virtudes
Quarta-feira, 26 de Janeiro de 2005
A minha rua é de pedra muito bruta
paralelepípedos
paralelepípedos
paralelepípedos
A minha rua é a descer
mas quando chove a água não escorre
faz poças
faz poças
faz poças paralelepipédicas
nos intervalos dos paralelepípedos
A minha rua é geometricamente rectangular
Se fosse quadrada ou redonda
não seria uma rua mas talvez uma praça
E quando chovesse ao invés de
poças
poças
poças paralelepipédicas
eu na minha praça teria um lago
um lago
um lago provavelmente cubico
um lago provavelmente cilíndrico
A minha rua matematicamente é uma série... de buracos
religiosamente não anda nada católica
filosoficamente é uma mistura ecléctica... de fios eléctricos
politicamente é direita... mas desconfio que é vesga
enfim... é uma doida de uma rua
deixem as janelas abertas
para que possam entrar os aromas
e os ares sadios
que saem de casa convosco
bem cedo pela manhã
e à tarde fechem-nas
para que o vosso riso travesso
não caia sobre quem o não merece
e para que o vosso
perfume esteja comigo
sempre ao meu redor
Domingo, 23 de Janeiro de 2005
os peixes iludem os pescadores
as crianças zelam pelos adultos
e a inocência branca da luz é tanta
no paraíso
Sexta-feira, 21 de Janeiro de 2005
deixo as impaciências com os sapatos
a um canto
e sigo o rasto dos perfumes
percorro com os olhos
eflúvios que entardecem comigo
mas que não vejo
quero
mas não consigo domesticar as horas
nem os caminhos
e assim abalo tão descalço de tudo
nú como nasci
quero afastar-me quero
mas só me afasto tanto
quanto alguém se pode afastar
do que não tem fim
Quarta-feira, 19 de Janeiro de 2005
apascento em silêncio cada uma das letras
apedrejo o alfabeto
e o aparo dos meus dedos
cachorro
trá-lo de regresso arrumado em palavras
o silêncio é a escuridão do som
o branco é a sombra da escrita
Domingo, 16 de Janeiro de 2005
Intuir
intuir é desatar os pulsos
e ensaboar o futuro
com sabão perfumado
é sublime rebeldia
lanternas de brasa
vozes e claridades de água pura
braçadas de mantras
sopros de salvação
preservo na memória a exuberância dos vocábulos
e o trajecto da conversa
atrás de ti
como a tua sombra
sempre desfocados aos meus olhos
estendiam-se preguiçosos rebentos de folhas verdes
que bocejavam a cada palavra nossa
mas que despontavam vivazes a cada bocejo
a prosa seguia enquanto uma após outra
sempre à tardinha
todas as folhas desciam do arvoredo
flutuavam até à terra para serem filigrana e chão
e só as letras do que dizíamos permaneciam inférteis (?)
no ar
Filosofia das frases
a filosofia das frases é como a da água
aguaceiros que a gravidade sorve e a ventania liberta
também os caudais de palavras se abatem sobre os poços
rasos de uma chuva mordaz que escoa como saliva
e a voz sai às cachoeiras
em rotas soltas que a terra não agarra nem o ar conserva
Crescem searas
Crescem searas de trigo nos teus dedos
que sulcam a terra como arados
feitos da ferrugem dos séculos
Chove
Cintilam torrões negros
musgo-húmus já ignoto no tempo e na história
como se fossem amalgama de sangue
e nós de uma corda feita de gente
Avatares
Soavam ditirambos a Baco-Príapo
enquanto lhes vendia corpo e alma
Dos Demónios não tinha recordações futuras
porque o Verbo era apenas profecia
De Sidarta a memória muito distante
de uma sabedoria feita de avatares
E a vida toda ela presente
toda sentidos e corpo
No ar
Quando os dedos correm as teclas
os passos ouvem-se martelados,
nítidos, como se o piano fosse uma planície de trigo,
cheia de gente em tempo de monda.
No ar fica o rasto de quem trabalha.
O perfume dos corpos suados ...
Esquecimento
Quando crescemos deixamos cair no esquecimento
a maneira sempre ingénua de ver as coisas.
Quando crescemos lembramo-nos só vagamente
da lentidão de um tempo que teimava em correr devagar
e de uma meninice longínqua
Sherazade
Sherazade pode contar histórias
pode construí-las em mil e uma noites
Que Rimsky as descreve com o rigor da música
e a precisão da sua batuta
Ali Baba pode ordenar aos sésamos que se abram
Simbad pode navegar nas águas turvas
ou nas areias revoltas de Bagdad
Que Sherazade descreve o seu mundo com mestrança
E Rimsky as histórias com muito brilho
De nascente a poente
Sou relógio,
giro enquanto o tempo, de nascente a poente,
cruza o céu e este umbigo, de onde me nascem os ponteiros
e me surge a rotação.
Os ponteiros afligem-me, porque não sei se o movimento é deles,
se meu e de quem me traz consigo.
E quando me vejo neste azáfama incessante,
nestes encontros de olhares furtivos,
nesta medição despreocupada da intimidade dos outros,
cresce-me o apetite de ficar quieto,
como se fosse dono do que não sou
Breve medida
o teu rosto faisca virtudes
nas manhãs mais humidas escorre da névoa
vago e manhoso como o orvalho trocista
o teu rosto é uma breve medida
uma cadencia rasa de falatórios e de rimas
Da inocência
I
Da inocência falava o unicórnio à virgem
enquanto ela expunha os seios desnudos e firmes
para que neles encostasse a cabeça
e a donzela se apoderasse do chifre
II
É este o mistério do unicórnio
tão excessivo para quem se corrompe
que só pelas mãos puras de uma virgem se deixa mutilar
III
Nascido da observação atenta das nuvens
devorador dos eclipses e zelador das chuvas fecundas
o seu fascínio pela pureza é desmedido
IV
Pela inocência e pela candura tem tal apreço
que se fica pela sua contemplação
V
E assim preserva a brancura e deixa de lado tentações
que maculem o objecto do seu desejo
É bom
de que serve estar só
se coabitam connosco tímidas convicções
tão frágeis
que há balança que as pese
é bom ver repleta de Irmãos
a praça onde nos encontramos
Os astros
são vagabundos
adoradores da noite
e não erram o seu propósito
porque são o telhado do mundo
rompem do escuro
são naus carregadas de lastro
e pedra bruta em forma de nada
Divina condição de poder ser tudo
Sono
não sei se durmo ou vivo
porque sinto o sono nas veias
e o sangue a hibernar-me no corpo
Rebeldia
Saíram dos logradouros
da filosofia
Dos preceitos
da rebeldia
Mais forte do que as leis
a resistência telúrica
que já vem do berço
aos açoites
mesmo esmagadas nos calcários
as ossaturas e as espinhas
são estampas fósseis
da insurreição da vida
Hei-de lá pôr tudo
hei-de fazer uma azenha no meio do mar
uma azenha enorme
em que o peso das águas mova pedras circulares
redondas tamanho de continentes
no olho-da-mó hei-de lá pôr tudo
no deserto
as promessas do paraíso
nas vagas de areia
a magia
nas dunas de silêncios
um cardume de sereias
no deserto
nada
só a tranquilidade e o encanto das fadas
Já os eremitas do deserto procuravam
nas dunas
o que de profundo pode haver na sua contemplação:
uma virtude tão próxima de Deus quanto afastada do diabo.
Catavam em cada grão de areia os pecados do mundo
e nada achavam,
porque olhos castos não podem saber o que é o vício,
nem procurar formas e conteúdos que não conhecem.
No deserto a solidão pode convidar à procura.
Pode, até, aproximar um homem de si mesmo,
mas nunca de Deus.
Diria o profeta que um homem mesquinho está longe das pessoas,
mas perto do inferno.
Sexta-feira, 14 de Janeiro de 2005
Quem me esboçou a jornada
deu-me também liberdade no risco
Livre será o arbítrio
Tanto como o destino que há-de perguntar-me
que desenho fiz da minha vida
que traçado lhe dei
qual foi o estado da arte dos meus últimos dias
Direi que não descobri o umbigo do mar
Que não converti
nem pesquei
todos nem parte dos peixes do sermão
O que me dói muito
Segunda-feira, 10 de Janeiro de 2005
1. no bulício da cidade não encontro
búzios nem conchas
2. bem longe as ondas libertam-se na falésia
suicidas rebentam numa revolta contida
turbulenta à superfície
muito serena junto ao chão
3 . quando se pertence ao mar
todas as cidades são madrastas
Quarta-feira, 5 de Janeiro de 2005
As sementes do fogo, luzes do espírito
que Prometeu roubou,
poderia eu tê-las furtado no fervilhar deste alvoroço de pensamentos.
E que Zeus me punisse:
que soltasse feras, de rapina e doutras qualidades;
que me enredasse em correntes ou simples freios;
que atasse por inteiro a linhagem dos Titãs...
Que não é possível saber de mais!!!
Segunda-feira, 3 de Janeiro de 2005
não quero regressar
hoje fico ancorado na margem de cá
as esmolas que aqui recolho são tantas
que pagam viagens e ausências
não
hoje não quero acordar
Sábado, 1 de Janeiro de 2005
os relógios calaram-se
na cidade acabou-se a história
quando o tempo ancorou
nem outros dias
nem outras noites
sempre o presente
as crianças pernoitaram na inocência
e os velhos na sabedoria
cada um como era
cada coisa como estava
os relógios de sol ficaram de vez à sombra
e só as clepsidras mediam a escuridão