Segunda-feira, 28 de Fevereiro de 2005
um silvo vibrado com a funda
cai certeiro no sossego do papel
é a solidão do lençol que se parte
quando um poema se aproxima
então basta remar
para que o meu barco se eleve nos ares
que mar já não há aqui que se possa descobrir
Sexta-feira, 25 de Fevereiro de 2005
Enroscado na alcofa o gato teve um sobressalto.
Molengão, espetou as orelhas e olhou desconfiado.
Depois de lamber as patas
limpou com elas o focinho,
mais os dez pelos hirsutos do bigode.
Não era nada de cuidados.
Quando os cães ladram
miam os gatos mais assustadiços.
E ele não miou.
Cão que ladra não morde, diria o gato.
E ele não disse.
Gato que mia quer festas, diria cão.
E ele não quis.
Terça-feira, 22 de Fevereiro de 2005
está maduro agora o menino
que já tivestedormindo ao colo, Senhora.
se esteve quieto e sentado o destino, à sua espera
desde que a juventude nele se esvai e esconde,
é porque os tenros dias são também quimera
que a mais pura das certezas calar não pode.
mas se verde ainda hoje seu corpo fora, mansos e serenos
seus olhos pousariam em tudo o que fosse para eles novidade.
e se muitos são os mistérios da ousadia, dois deles pariste
com teu filho, Senhora, quando com ele deste à Luz
tanta Esperança e Liberdade.
Sábado, 19 de Fevereiro de 2005
Diz o poeta
que todas as verdades vêm ao mundo
pela mão da sua irmandade...
Diz o poeta
que musicar um poema é pura redundância...
Diz o poeta
que a poesia é inofensiva...
Diz o poeta
que a Liberdade é a sua enxada...
Os poetas dizem
tantas coisas...
Quarta-feira, 16 de Fevereiro de 2005
quando abrires os olhos
cala bem fundo o teu futuro na multidão
arremessa-o certeiro
porque é nas torrentes o lugar dos que confiam
na existência de um algures absoluto
onde se pressente a Luz
e as palavras se escutam mesmo que ninguém fale
e quando não achares contentamento na pregação das virtudes
quando os sermões por mais exaltados
te fizerem sentir um sossego estranho no corpo e na alma
poderás então gritar a Palavra
e com a mesma incerteza com que amanhã lançarás os dados
terás junto de ti sem que disso dês conta
a evidencia de todas as coisas
Domingo, 13 de Fevereiro de 2005
Como seria bom se o despertar se alcançasse
por uma intuição súbita
e se nos entendêssemos na língua dos pássaros.
Não seríamos sopradores em busca dos mistérios da matéria.
Seriamos talvez toldados pelo delírio divino:
uma canção de roda
corrida e cantada pelas Musas, Apolo, Dioniso e Afrodite.
Assim mesmo, todos eles tu cá, tu lá, em amena cavaqueira
e solfejo muito afinado com Platão.
O mesmo que,
descrevendo Sócrates de pés desnudos e Fedro de sandálias,
nos falou da humildade que deve calçar os mestres
perante a inocência dos discípulos.
Quinta-feira, 10 de Fevereiro de 2005
Quem sabe se no silêncio reside
o mistério do deus Knum,
que de uma roda de oleiro faz surgir toda a água do Nilo,
rio que tudo une.
Margens, céu e leito.
Quem sabe se a pele negra de Anúbis,
chacal devorador de cadáveres decompostos,
não transfigura a palavra no silêncio,
ou na terra pura, o que é o mesmo.
Segunda-feira, 7 de Fevereiro de 2005
sei mas não quero saber se há desertos onde nunca chove
a ignorância sempre me fez o sono leve
não terei pés de barro nem frágeis ciúmes porque não vejo
para além dos momentos que exaurimos
e que uns depois dos outros se precipitam estouvados como nós
Sábado, 5 de Fevereiro de 2005
em pleno dia se não entro e me encosto à portada
a contraluz deixa-me numa sombra que te encandeia
perguntas por mim e se me calo
insistes insistes sem cuidares que é o meu contorno que ali está
sou eu indistinto aos teus olhos que te observo com exactidão
e presumo o calor do teu colo porque não estás no calor do meu
Quinta-feira, 3 de Fevereiro de 2005
converti-me a estes mornos encontros matinais
porque a vida é uma conversão contínua
a tudo quanto quisermos acreditar
creio que o frio quando o tenho se fez só para mim
suporto por isso os obscuros rigores do nevoeiro
e aceito a predestinação nómada dos meus dias
mesmo quando a cada hora não sei da seguinte
sou esperançoso esperança trago eu sempre comigo
quando meço a rotação dos tempos pelas translações lunares
sejam elas novas escuras indiferentes e gélidas
seja a noite cheia de lume e vazia de medos e escuridões.
Terça-feira, 1 de Fevereiro de 2005
entre os frutos nocturnos da lua recolho na escuridão a geada
e espero pelo degelo da manhã
gosto de sentir as mãos geladas deitar-me ao teu lado
e aquecê-las lentamente no teu hálito
percebo pelo caldo dos lençóis que não há gelos perpétuos
nem orvalhos intemporais que não escorram
na areia aquecida pela nossa presença