pudera eu despir-me aqui perante vós
que mesmo nu continuaria adornado
desta minha condição humana:
pedra e força bruta.
porque as faces mesmo lisas não deixam de ser rudes,
nem as arestas por mais perfeitas deixam de ser ríspidas.
pudera eu vir aqui fazer-vos
a critica da convicção pura
e falar-vos de tudo quanto sinto mas não digo.
pudera eu vir aqui expor-vos os argumentos
das razões que não sei se tenho
e de todas as opiniões que pari desde que me entendo.
pudera eu ser um homem sempre justo…
que as outras imperfeições carregá-las-ia de bom grado
no saco da minha consciência.
pudera eu dizer tudo isto e ser entendido,
e não estaria aqui convosco.
mas quis a fortuna que o Grande Arquitecto
permitisse que, no prefácio da narração dos tempos,
os homens nascessem brotando do chão.
quis Ele que na Idade do Ouro o Sopro Criador
se confundisse com as criaturas,
que o Homem fosse o guardião das cores,
o zelador de todos os ocres e pigmentos.
quis Ele dar ao Homem a sede autentica mais a divina figura.
também a ousadia, fundamento da Liberdade.
quis ainda a sorte que Prometeu nos desse o lume divino,
e que a caixa de Pandora, senhora de todos os dons,
se abrisse entornando contratempos.
desde então as ideias são como alaridos e esgrimas
e as frases soam a desconfianças bastardas.
rebuscamos no campanário das vozes e das prosas de Babel,
a Palavra que um dia dará forma à doutrina do entendimento humano.
catamos na multidão dos vocabulários,
nos mistérios dos catecismos,
no frágil talento dos nossos rudes critérios:
o Sopro Divino, Grande Alento, brasas de Luz a partir do nada;
a Harmonia das Esferas, caroço das perfeições possíveis;
os pedaços, na miragem de chegar ao Todo colando as partes.
dói olhar para um homem, vê-lo só a ele, e nem sequer todo...
dói procurar nas Borras da Fundição, olhos que vejam como os nossos...
dói encostar o ouvido ao búzio e não adivinhar o sabor do sal...
dói tanto...
mas no dia em que o céu se partir,
as tábuas da mecânica do mundo hão de peregrinar.
nesse dia estarei convosco, para guardá-las.
Basta-me!
(Republicação)
não sou de cá, dizes-me tu.
não és.
não és mas sabes
que todos os rios conhecidos moram aqui...
onde?
aqui. na fonte dos caminhos.
no teu peito...