O homem levantou-se lesto e nú
como fora posto no mundo,
chegou-se à janela escancarada
e ladrou para a Rua do Capelão
que é a rua de todas as virtudes e virgindades
que em todas as idades se perderam na Mouraria:
- Este caloooor faz-me ter saudades do friiiio...
Da esquina do Largo da Severa,
voz feminina rosnou baixinho
como se fosse uma cadela:
- Vai tomar banho que arrefeeeeeces...
E todos os dias de canícola o santo homem ladrava
e, como quem não quer, rosnava a santa mulher.
No pino do inverno,
quando chovia todo o santo dia
água gelada, fria, fria...
o homem levantava-se vestido:
de pijama de flanela atado às canelas,
peugas grossas de lã de ovelha
e barrete enfiado até às orelhas.
Abria meia janela e gania para a Rua do Capelão
que é a rua de todas as virtudes e virgindades
que em todas as idades se perderam na Mouraria:
- Este frio faz-me ter saudades do caloooor...
E arrastava o ó para que ouvissem como gania bem.
E aquele lamento, de quase esquimó,
subia e descia as encostas da cidade
até São Vicente, ao Beco da Mó.
Mas era da esquina do Largo da Severa
que uma voz feminina gania também:
-dorme de botija aos pééééés...
que aqueces por deeeez...
Na primavera e no outono
nem um nem outro ladrava, gania ou rosnava.
Ele abria e fechava a janela todas as manhãs: calado.
E ela à esquina feita virgem menina
vendendo a virgindade como podia
as vezes que conseguisse ao dia.
E à noite: era o fado!
Imagem daqui: http://permanentereencontro.blogspot.pt/2015_04_01_archive.html
Perguntaste-me:
como podem as mil e uma noites
chegar à eternidade?
Ao dia a dia das coisas menores que fazes?
À vidinha que tens?
É simples!
Basta acrescentar histórias às histórias de Sherazade.
Como?
Contaram-me que um velho muito velho
tinha nas mãos o dom da palavra:
batia palmas e soavam discursos e poesia!
Palavras e mais palavras saltavam-lhe das mãos
e, se a conversa fosse triste, até os dedos choravam.
O velho não podia bater palmas sempre,
porque as palavras das mãos eram mais sinceras
do que as palavras que dizia quando falava pela boca.
De inverno, quanto o frio pesado lhe caía em cima,
o velho batia palmas para ficar quente
e de entre os dedos ouvia-se o Pessoa
carregado das razões, do calor e do frio
que tinha e não tinha.
E às vezes Camões: “alma minha...”
E quanto mais quentes lhe ficavam as mãos
mais quentes eram as palavras que se ouviam.
Num dia de frio, de luvas calçadas,
ouviu-se a voz rouca e sumida da Florbela
que mal conseguia sair-lhe pelos pulsos...
“Se tu viesses ver-me hoje à tardinha,"…
E quando às batidas dava jeito de sapateado
e gestos de flamenco,
eram de Lorca as palavras que se ouviam.
Voz arrastada...
entre lamentações ciganas e o fado.
Num dia de calor o velho, de mãos suadas,
limpou as mãos humidas e bateu palmas para secá-las.
E Pablo Neruda saíu-lhe a cantar Tango
Viúvo, como o pai a um mês dele ter nascido.
Ah! Mas o velho também batia os pés!
Ficou famosa uma pateada no São Carlos
por conta do Castelo do Barba Azul.
Nada que se devesse ao Bartok,
que nestas coisas do canto as pateadas
vão mais para quem abre as goelas pífias
e regurgita fífias em forma de pranto.
No fim do primeiro e último acto
(que o compositor foi poupadinho),
toda a minha gente pateava a Judite e ele também.
E pela manga dos peúgos saíu-lhe o Ezra fanhoso:
“Arre! Já celebrei mulheres em três cidades,
Mas é tudo a mesma coisa;
E cantarei ao sol.”
Um dia, uma criança que estava à beira do velho,
sabendo daqueles seus dons pediu-lhe
que batesse palmas e pateasse ao mesmo tempo.
A algazarra foi tanta vinda das mãos
e de baixo, pelas perna a cima e de todo o lado,
que o coitado do velho caiu por terra!
E em dois dias foi enterrado.
Foto daqui:
haja ou não a loucura
que Erasmo elogia e outros cantam
seja o engano a luz permanente
que se acende no entendimento dos loucos
que e eu serei hoje e sempre a doçura
que fui
porque sou
porque olho a loucura nos olhos
e leio como poucos as palavras
que se lêm gravadas a fogo
na vida de quem está não estando
nos pensamentos de quem pensa
que há um jogo que se joga
fora do que seja humano
haja ou não haja a loucura
existirão sempre ocos elogios
aos moucos que percebem o mundo
como navios carregados só de lastro
e os outros
aqueles que o peso de tanta pedra
não sobrecarrega a cabeça nem os ombros
farão promessa de tábua rasa
do escuro e dos assombros
das loucuras e dos altos muros
das brazas
das quedas e dos tombos
e depois como no Livro
serás um
serás dois
no princípio e com o que houver
haja ou não a loucura
queiras ou não queiras
virá o dia virá a noite
serás homem
serás mulher
Imagem: Gilson Simabuku
Daqui: Elogio da Loucura
. Perto
. Frágil