O homem levantou-se lesto e nú
como fora posto no mundo,
chegou-se à janela escancarada
e ladrou para a Rua do Capelão
que é a rua de todas as virtudes e virgindades
que em todas as idades se perderam na Mouraria:
- Este caloooor faz-me ter saudades do friiiio...
Da esquina do Largo da Severa,
voz feminina rosnou baixinho
como se fosse uma cadela:
- Vai tomar banho que arrefeeeeeces...
E todos os dias de canícola o santo homem ladrava
e, como quem não quer, rosnava a santa mulher.
No pino do inverno,
quando chovia todo o santo dia
água gelada, fria, fria...
o homem levantava-se vestido:
de pijama de flanela atado às canelas,
peugas grossas de lã de ovelha
e barrete enfiado até às orelhas.
Abria meia janela e gania para a Rua do Capelão
que é a rua de todas as virtudes e virgindades
que em todas as idades se perderam na Mouraria:
- Este frio faz-me ter saudades do caloooor...
E arrastava o ó para que ouvissem como gania bem.
E aquele lamento, de quase esquimó,
subia e descia as encostas da cidade
até São Vicente, ao Beco da Mó.
Mas era da esquina do Largo da Severa
que uma voz feminina gania também:
-dorme de botija aos pééééés...
que aqueces por deeeez...
Na primavera e no outono
nem um nem outro ladrava, gania ou rosnava.
Ele abria e fechava a janela todas as manhãs: calado.
E ela à esquina feita virgem menina
vendendo a virgindade como podia
as vezes que conseguisse ao dia.
E à noite: era o fado!
Imagem daqui: http://permanentereencontro.blogspot.pt/2015_04_01_archive.html
. Perto
. Frágil