acima de nós
a noite e as corujas cantam
como se a luz apenas dormisse
ou fosse à esquina onde sentado
alguém sopra uma harmónica
para embalar os gatos e os donos sonolentos
abaixo de nós a terra
e os mistérios que se adensam nas grutas
e nas estalatites milenares
e nós
no húmus fermentado dos corpos que foram
de outros mas que amanhã serão os nossos
e nós
nas raízes dos prados que ao sol
germinarão verdes no mundo do meio
no perfume sem tempo dos nardos e das Rosas
#rosas #nardos #prados #sol #
hoje os afetos são outros.
saíram os que o tempo levou
e entraram os que o tempo trouxe.
as ternuras de ontem não são as de hoje
e nem as brasas maternas estão vivas,
porque os abraços arrefeceram na distância.
hoje há tanta indiferença por aí .
tanta.
às vezes penso que só o meu cão me permanece fiel.
à minha frente olha-me porque me adora.
e se eu desvio os olhos ele desvia os dele
com os meus, para continuar comigo nos seus.
e não há inverno que resista a olhos tão doces.
a tanto calor.
#inverno #calor #indiferença #ternura
ao fim da tarde e com o sol baixo
há uma tristeza imensa no céu,
que se vê nas águas
e me faz querer voltar a casa.
lembro-me da impaciência que tinha
em garoto, quando a casa podia esperar
porque moravam na rua as minhas ambições.
corria, corria, corria
atrás do frio para que ele me soltasse
no toca e foge habitual da brincadeira.
nada em casa me fazia feliz
para além dos braços abertos da minha mãe.
quentes como as brasas
e mornos como ela mos sabia dar.
#inverno #luz #poesia #mãe
talvez seja mesmo assim, mas hoje sobrevivo
melhor sem o frio que em forma de vento
fustiga, impiedoso e desumano
quase como gelo,
o calor do lume brando que a lenha liberta
e as brasas sinalizam, na lareira.
talvez seja da idade, eu sei!
mas hoje sobrevivo em paz comigo
quando à noite, contigo perto,
as nossas mãos e olhos improvisam
caminhos por lugares incertos,
com adufes, sopros e cordas em cantiga.
mais a certeza de uma ternura
e de um travesseiro onde possa encostar,
tarde ou cedo, sem reservas visíveis,
de qualquer maneira, sem medo,
tudo.
tudo quanto queira.
#1
caiu um copo.
partiu-se com estrondo no chão!
juntei as partes.
estavam lá todas as peças do puzzle,
mas o copo não…
presumi sem reservas
como faço nas conversas,
que o todo seria mais que o somatório das partes.
mas não foi só presunção.
porque afinal eu tinha os cacos todos, mas um copo?
um copo, não!
#2
seria fácil construir um homem se o todo não fosse mais
que o somatório das partes.
o Frankenstein e o Pinóquio seriam modelos perfeitos,
perfeitos modelos de gente.
seriam... se o todo não fosse o que é
ou fosse diferente..
há dias assim
levantamo-nos e à janela
o ar dá-nos esperança ao corpo
e uma certeza profunda aterra-nos no coração
como se fosse na alma
há dias assim
quase luminosos
quase perfeitos
que nos chamam pelo nome
que nos prendem pela mão
e nos falam da Liberdade
e do paraíso na terra
há dias assim em abril
o mês de todos os sonhos
o caminho de todas as naves
o tempo de todos os cravos
há dias assim
os cabelos esfumados na testa com um risco
definido aqui e além;
o traço das abas do teu nariz, o teu rosto a descansar
no teto de ambas as mãos;
o contorno circular das iris, a curva dos lábios;
o tempo difícil dos teus olhos
e as pestanas desenhadas com precisão;
o rebordo do queixo pousado,
o esboço visível dos lóbulos,
delimitados, difusos, intemporais.
descrever-te é desenhar o teu retrato.
Imagem daquiu: https://www.ataluz.com.br/decoracao/escultura-decorativa-rosto-de-mulher-apoiado-sobre-as-maos
há solidões que encontramos
perdidas ao virar do que fazemos
há companhias que encontramos
desencontradas do sentido
que queremos dar à vida
como a entendemos
a ela e ao mundo
regressamos então aos refúgios perdidos
que vislumbramos às vezes sem saber como
mas que mesmo assim nos deixam seguros
quando os vestimos
Imagem daqui: https://addicted2success.com/life/being-alone-with-yourself-is-the-most-important-skill-we-have-lost/
no banho Marilyn escutava os contornos
das linhas curvas e o timbre da própria voz
sem o baton escarlate
sem o blush marmóreo
sem os finos saltos altos que não a deixavam ficar
em bicos de pés no banho
a estrela ficava despida e até se julgava
uma mulher vulgar
um meteoro sem história
mas quando se vestia toda de branco-marfim
o ar quente exalado pela grelha
do subway de New York levantava-lhe a saia
dos pecados
e sabia-se que eles moravam ali mesmo
e não ao lado
foi quando na Broadway os anos eram de perfume
e os dias lavados com a essência de Chanel Number Five
e as horas com a flagrância de Rose Geranium
Dizia Pórcio Festo a Paulo em Cesareia,
Que os equinócios não são falos nem sereias
Que brotem dos outonos e primaveras.
Respondia Paulo a Pórcio Festo que na Judeia
Há partos feitos nos umbigos dos solstícios,
De onde nascem touros indiferentes e feras,
loucos, primícias, prelúdios, mansos e parvos.
Falsos ingénuos e alarves!
Imagem daqui: http://www.monedasarqueologicas.20m.com/#Porcio%20Festo
nem deuses nem diabos,
nem mestres nem discípulos,
sem passado nem futuro,
sem tempo.
de olhos nos olhos
dos outros.
de cara a cara, hoje.
sempre!
imagem daqui: https://www.bbc.com/portuguese/geral/2016/05/160508_diabo_vermelho_chifres_rb
navegarás à bolina pelas estradas,
com o céu a bombordo
e à direita a terra que te pesa.
ao ouvido dizem-te que os figos estão verdes
mas que a figueira está madura
sem nunca ter florido.
sabe quem entende e conhece
que as árvores da vida se agarram à terra:
profunda quando querem chegar ao céu;
à poeira quando lhes basta existir.
navegarás à bolina pelos caminhos,
com rios férteis a estibordo
e à esquerda o deserto semeado de pedras,
lápides repletas de juramentos e epitáfios.
sabe quem entende e conhece
que as margens do Nilo são férteis.
benditas as areias que ele fecunda,
benditas as dádivas de tâmaras adultas.
navegarás à bolina pela cidade.
à bolina pelas vielas e becos inseguros,
onde o bombordo fica no lado mau rua
e as estrelas dormem na espuma,
contigo na cama.
sabe quem entende e conhece
que todas as árvores da vida estão inacabadas.
há tristezas nas águas sujas do Ganges
esperanças nas águas sagradas do Tejo.
Imagem daqui: https://g1.globo.com/natureza/noticia/justica-indiana-declara-rios-ganges-e-yamuna-seres-vivos-com-direitos.ghtml
Delicado como um fio de seda crua,
frágil como a inocência do perfume.
Efémero na cor, colorido na música,
doce na pessoa e plural no número.
Sem tempo no verbo, quieto no modo.
O amor.
Eram teus todos os dias! Meus apenas os outros.
Os que ficavam nas margens estreitas
dos rios que navegavas e vias.
Aqueles onde os gentios vêem escritas,
espelhadas na água, as palavras que te definem,
as âncoras que os fazem loucos.
Na feira da Ladra ladram os cães.
A caravana passa repleta de bugigangas:
roupa usada, muitas calças de ganga
que gente séria e os sacanas dos ladrões
expõem no chão e vendem ao desbarato.
A guita certa tem os seus dias. A loiça velha,
os pratos de Sacavém, têm preço
incerto conforme a cara de quem compra.
Como convém.
São Vicente de Fora, dos espanhóis,
filipinos de má memória.
Ao Beco dos Loios e a Santa Marinha
chegam guitarradas sopradas de Alfama.
E Amália em correria do Panteão às escadarias
do convento, de olhos no céu, cabelo ao vento
e voz na terra, a bater o pé :
“são caracóis, são caracolitos,
são os espanhóis, são os espanholitos”...
E a feira sempre repleta de bugigangas!
Roupa usada de magalas, calças e calcinhas,
fechaduras, bengalas de pau preto e de marfim,
louça nova, velha, rachada, tostões furados,
chaves ferrugentas, tudo e nada.
Tudo se vende na Feira da Ladra.
Imagem daqui: https://viagemparalisboa.com/feira-da-ladra-em-lisboa/
o guru insiste em dizer-nos que somos uma expressão
de deus. do deus bom, que o mau não tem dimensão
que nos valha, nem conta para a salvação de ninguém.
nem de mim, nem de ti.
e nós de mãos erguidas ao céu e de rosto ao sol
convencidos que somos uma expressão de nós
mesmos! só de nós!
e nós, com a dimensão do coração que temos,
a pensar que estamos aqui por que sim:
ora perante os outros, ora sujeitos ao mau feitio
dos elementos e da intempérie que nos faz estar vivos.
enfim, correr e sonhar.
sim! o guru insiste que somos a expressão
de um sonho. de um sonho bom.
Deixaremos a cidade das alegrias
onde se colhem os risos pouco virtuosos
e se erguem as raízes do tédio.
Destruiremos os velhos relógios mecânicos
que medem o tempo sem a eternidade do Sol
e dos girassóis.
Em silêncio sairemos ilesos do que somos
e nada nos faltará quando chegarmos a nós.
Então, lado a lado, abriremos os olhos
e regressaremos sem máguas aos dias imensos.
Imagem: Ericeira - LNM
Um café negro acorda-me
e uma água fresca lava-me por dentro.
Para a manhã que já vai alta
no Bairro Alto.
Na rua do Norte o sol anda pelos telhados
e nem os beirais confessam os caminhos para Sul.
Eu passava por aqui há muitos anos,
quando era jovem há menos tempo
e a alegria que tinha nos pés
fazia-me andar com uma pressa
que já não tenho.
Perdido, descia as pedras sujas.
Era tudo tão soturno logo pela manhã!
Vinha da Travessa da Queimada ao Poeta
e as varinas às esquinas vendiam
o peixe que podiam em pregões
que gritavam a sorrir.
Das tainhas aos carapaus de gato,
das fanecas, às douradas e sardinhas.
Santo António mandava, do sermão,
peixe pobre para os gentios.
e gatos de estimação
No Camões o vinte e oito corria à Estrela
e eu corria ao Calhariz, onde embarcava.
Custava menos...
Não havia grafitis, só tipógrafos
que rumavam a casa para regressar
à noite à tipografia, quando não havia fauna.
Só flora muito perfumada,
às vezes sem graça, que emergia do patchouli
e que ao fundo das escadinhas do Duque
já marcava terreno e odores até ao Rossio,
Coliseu e Restauradores.
Foto daqui: https://www.playocean.net/portugal/lisboa/bairros-historicos/bairro-alto
Poderás sentar-te nos jardins, à beira rio.
O Sena aos teus pés, a água turva, o tempo denso.
Uma velha concertina no ar húmido da manhã,
em Paris.
Poderei sentar-me nas escadarias de Roma,
nos jardins de Copenhaga e da soturna Londres.
Nos suspensos da Babilónia,
onde Dario e Alexandre amaram sem pudor.
Poderemos rezar nos jardins de pedra
de Nagasaki e de Hiroxima.
A redenção aos nossos pés!
A água pesada, os relógios parados,
uma flauta de bambu ao vento, à nossa imagem.
Lamberemos as feridas.
Poderás curar-te.
Poderei curar-me.
Afinal, todos os jardins nos redimem
e todos são belos.
À sua maneira
Imagem daqui: https://ar.pinterest.com/pin/391039180147858544/
O meu rafeiro nunca conheceu cadela.
Depois de adoptado ficou citadino,
matreiro urbano, capado.
- Anda Ludovico, deixa-te disso!
Marcar terreno é coisa de cão, é vício.
O meu cachorro é mijão.
Sai de casa pela trela e de mijadela em mijadela
faz questão de me dizer que afinal
e até ver, ainda é cão.
- Anda lá, deixa-te disso,
que marcar terreno não é preciso.
É que nem capado deixa de querer
o prazer das mijinhas que podia fazer,
sem demoras, em qualquer lado.
- Anda Bobi! Esquece!
Deixa, que deixar sinal para outros, não é para ti.
Afinal não tens caprichos, nem me parece
que os vinténs que ainda tens
alguma cadela os mereça.
Nos passeios, ruas, jardins e prados,
ele cheira tudo muito bem cheirado.
Levanta a perna, segura o muro
e deixa tudo muito bem mijado.
- Anda cachorro. Vem dai!
Que Ludovico dizem que era
um príncipe louco da Baviera.
Louco varrido e assim lembrado.
Anda rafeirinho que aqui é Lisboa.
Cidade das canoas, do Tejo.
Terra do fado.
Na foto o meu Ludovico
Quem diria
que nestes tempos maduros estaria aqui sentado
à lareira, aconchegado ao sorriso do teu xaile.
Quem diria.
Quem poderia saber como seria eu
agora, depois de tantas luas,
tantos dias, invernos sem lareira nem xaile.
Sem agasalho.
Quem diria que eu chegaria intacto
ao mundo que vias, à terra prometida
de que me falavas sem dizer.
Quem diria, mãe.
Quem diria.
Foto daqui:
https://www.luzepaz.org/wp-content/uploads/2013/05/artigo-crianca-colo-mae.jpg
E depois o mar, sempre o mar.
Como rendas gráceis , as algas
mais as pérolas de sal
nas escamas vestidas por Salácia.
E também a espuma, sempre a espuma.
As efémeras e húmidas núvens, a bruma
que Venília traz aos pés de Neptuno.
À fronteira da praia, onde é estrangeiro.
Com toda a paciência cristã
perguntava Ele à companheira do lado:
- Ó Madalena, minha querida, a ceia está validada?
E ela com algum enfado respondia,
com os olhos no teto e aparente afã:
- Maldita pandemia, olhos dos meus olhos!
Maldito bicho, meu querido Jesus,
que nesta última ceia por capricho nos permeia
e teima ficar entre nós.
E ele de olhos ao alto, como ela,
levantou os braços e deixou-os cair.
E assim ficou, pensativo e alheio.
Não partiu o pão,
não distribuiu o vinho.
Olhou de Judas a Tiago, seu irmão,
e de Simão a Pedro que seria o primeiro.
E a todos disse baixinho:
- Somos treze à mesa, a contar comigo!
Ou o décimo terceiro será qualquer um de vós.
Aqui, nós partilhamos o amor, sem sobressaltos.
O pão que a terra nos dá
O vinho e as uvas dos planaltos de Judá.
Madalena falou ao ouvido de Pedro
que sorriu com ela, divertido.
- Que dizes Madalena? – interpelou o Mestre.
- Olhos dos meus olhos, meu querido Jesus,
mais de seis à mesa não se usa agora,
em tempos de pandemia.
- Mas não sou Eu a Segunda Pessoa?
- És! Mas que Judas não se apague,
ou ficará por cumprir a profecia.
123
123
Só eu sei como gosto de chegar,
que nem o Profeta, passo a passo aos sete céus.
Contente o faço, satisfeito fico!
E nada me afeta quando de peito aberto
vou ao encontro do incerto espaço.
1234
1234
Juntos e depois à vez, saltitando
de frente, de mansinho salto.
Ligeiro no passo e quando não de lado,
chego consolado e sem cansaço.
12345
12345
Respiro fundo, fundo respiro,
que cinco por patamar é obra
e contar é o meu destino.
Irra! Que os anos pesam nas pernas,
que dobram e badalam como sinos
confinados ao limbo e ao paraíso.
Ou será inferno?
123456
123456
Que à dúzia fica mais em conta
e eu conto mas não meço.
A que preço! A que preço!
Mea culpa! Mea culpa!
Por minha tão grande culpa!
Deus meu, como pesam a idade,
a eternidade e a consciência nestes dias.
1234567
Assim, de uma vez e sem dobrar
dá gosto subir e descer,
chegar e sair.
12345678
12345678
Como dois octógonos concorrentes
ou polígonos perpendiculares.
Com música em duas oitavas,
e auriculares para oito orelhas.
Com dezasseis cabras, oito prenhas.
E leite, muito leite
nos vértices das ovelhas.
123456789
Conto, conto e não me canso de contar.
Depois do nove está o zero vazado
e depois do zero vazio sei lá que fado.
Ah! Pernas para que vos quero!
Que raio de vício este, aquele que tenho.
O de contar os degraus das escadas que subo
e de contá-los de volta, quando desço.
Créditos foto - imagem daqui: https://br.freepik.com/fotos-premium/estrutura-de-escadas-na-rua-arquitetura-na-cidade-de-bilbao-espanha_7554996.htm
Era junto ao limite que estavas.
Encostado ao muro, à incerteza
do ter ou não ter de acordar para fazer
da vida um tempo em que viver fosse mais
do que estar vivo.
Que fosse dignidade.
Dormias nas dunas, nos limites do mar,
na praia.
Ali, sonhavas com as certezas certas
dos paraísos que ainda não tinhas
na terra, com os desertos de areia
floridos de colmeias, férteis em mel,
sem azares e carregados do açúcar
que só os sonhos conseguem dar.
Ou dormias no chão, nos limites do céu,
junto aos torrões que lavravas.
E de manhã era o deserto, incerto
como sempre,
porque a chuva não caia ou caia brava
e a terra não dava frutos nem sementes.
Só cardos, revolta e pó daninho.
Mansos, mansos são os cordeiros.
Bem podes correr a lavrar o mar,
pescar os frutos da terra,
pastar os teus desejos de paz
e de senhor da guerra.
É louco. És louco.
A mesa poderá estar sempre posta,
mas todo o pão será pouco
para quem sonha.
Imagem daqui: https://www.spaltron.net/o-mundo-de-gaya/o-caminho-do-louco-o-processo-de-individuacao-e-os-22-arcanos-maiores-do-tarot/
a memória dos que vivem não pode morrer
assim, como os teus olhos soçobraram
às mãos dos algozes.
a história dos que morreram está viva,
como no percurso que fizeste
a caminho da morte.
não sei se alguém levantou a voz
ou gritou no dia em que caíste.
não sei!
grito eu agora por ti
e levanto a voz por quem resiste.
Foto daqui: https://www.terra.com.br/diversao/a-brasileira-por-tras-da-foto-de-auschwitz-que-viralizou,df5b169b120b1dff49a4c430e458abb6qvmeghu3.html
I
Tristes.
Tristes melodias despontam
das tristezas que tenho,
às vezes sem jeito.
II
Alegres.
Alegres melodias nascem
das breves alegrias que desenho.
Às vezes nos outros
e outras no meu peito.
III
Não!
Não serei indiferente
à cegueira, à surdez,
ao chorar e ao rir,
à lucidez dos sonhos, às utopias.
Não serei indiferente
ao chegar e ao partir,
à escuridão das noites
e à claridade dos dias.
imagem daqui: https://segredosdomundo.r7.com/sonhos-lucidos/
Já não procuro as imperfeições
nem as quedas de água na paisagem.
Sei que as ruas ao perto são fendas
que ao longe são vales distantes,
rugas lavradas no tempo da terra.
Já não procuro os amanhãs que cantam
nem vozes versáteis em muitas oitavas.
Contento-me com as tardes, só com as tardes.
E contigo que ao sol tardio te debruças
e aguardas, encostada ao parapeito,
que a lua espreite na penumbra.
No recorte frio e misterioso da noite.
Não desisto!
Conduziram-me pelo braço ao muro
e ali fiquei.
A impotência tinha-me tolhido a vontade
e viver assim deixava-me envergonhado.
Não me vendaram porque não quis.
Queria fitar os olhos dos meus algozes,
ver neles o medo, porque os senti medrosos.
À ordem do oficial um jovem imberbe
colocou a arma ao ombro e saiu do pelotão.
Dirigiu-se a mim e colocou-me de costas,
voltado para a parede.
O muro era branco e eu não suportava tanta Luz.
Reparei que a cal mascarava sangue
e que as fendas do muro sombreavam
a claridade, como crateras.
Na cal salpicada de riscos de sangue
vi tudo quanto tinha visto,
como se abrisse o diário que nunca escrevi.
Cerrei os olhos e aguardei pelo fim.
Antes da ordem, a sombra do jovem imberbe
soçobrou e ajoelhou-se com ele.
Ergui o punho e disparei a Palavra:
Fraternidade!
Fraternidade!
Fraternidade!
E o branco tingiu-se com o meu sangue.
Mas não desisto!
Imagem: Luísa Rivera - 100 anos de solidão
I
com tanto calor já nem durmo!
incomodam-me as cigarras, que à noite
cantam à lua como se estivessem ao sol.
quem disse que as cigarras não cantam ao luar?
quem disse?
II
disfarçadas entre as laranjas verdes
é vê-las ao despique com os grilos,
com elas a cantar o fado vadio
e eles à guitarra, gri-gri gri-gri,
a correr atrás do canto da cigarra.
III
“ cantarei até que a voz me doa” diria Amália.
mas a gritaria desta bicharada sai-lhes das asas,
numa cega-rega que irrita sem tréguas
os frutos do meu pomar.
ah! felizmente as laranjas são pacientes,
as árvores são pacíficas e a Amália,
que Deus tenha, dorme serenamente no panteão.
IV
tri tri tri tri tri tri,
com tanto calor já nem durmo!
gri-gri gri-gri gri-gri
puta que pariu o Verão!
Não deixa de ser curioso,
irónico até,
que eu chegue aqui intacto
na bondade e nos costumes.
Lúcido?
Não sei o que é um homem lúcido!
A minha lucidez está no que os outros
veem por mim,
quando conseguem ver.
Olho para trás e vejo
que cheguei solteiro de companhias.
Estive eu quando me alegrei
e estive eu, quando me entristeci.
Não estavas.
Nunca estiveste!
De calções e de sandálias,
ainda não sabia bem quem era
e já pedalava no meu triciclo
feito de ferro e madeira.
Pedalava,
Pedalava,
Pedalava.
E quando o senhor Pombinho
parava a burra, tocava a corneta
e chamava para que vissem as frutas
e as verduras que trazia,
eu dava ao pedal e ia pelo quintal.
Os pedais guinchavam
e a roda da frente, desconchavada,
dava e dançava ao sabor das pernas.
Em ziguezague,
em zaguezigue
No largo, frente ao portão,
estava a carroça carregada de frutas,
legumes e hortaliças muito viçosas.
No chão, o descanso caído porque a alimária,
de tão má, espumava de cansaço.
A burra travessa e destravada
mordia os mais incautos e atrevidos.
E o senhor Pombinho dizia:
- Cuidado que ela é falsa!
Só não ladra porque não é cadela!
Mas eu sabia que ela ladrava a zurrar
e zurrava a ladrar.
Quem se aproximava da carroça,
mesmo sem querer provava as doçuras
que o Pombinho trazia.
As melancias jaziam caladas*
com as entranhas à vista,
os figos desalinhados
e os cachos de uvas negras
ficavam ratados e sem planta nenhuma.
E o senhor Pombinho protestava.
Com o tempo o homem deixou de aparecer
e eu nunca percebi se tinha morrido ele,
a burra
ou a carroça.
Hoje imagino o Pombinho, qual pombinha, a dar às asas,
a carroça desengonçada a voar com ele
e a burra, qual Pégaso, a relinchar aos zurros
pelos céu azul.
E eu de calções e sandálias.
*Calar: Fazer abertura ou corte em certos frutos, geralmente para provar ou ver se estão maduros (ex.: calar a melancia).
I
no dicionário procuro a palavra.
leio que o silêncio é a ausência total, ou relativa,
de sons audíveis e que os surdos vivem
numa cultura silenciosa.
não é este o silêncio de que tanto gosto, não.
mas este silêncio está no princípio do meu silêncio
e é nele que imagino e concebo a ato da criação.
II
quando, com a palavra, o quebro,
trago para fora de mim, e talvez para os outros,
o que penso e a vontade que tenho. quando tenho.
mas porque nada existe sem a Divina Figura
depois da vontade falta o Verbo,
que no princípio era o que ainda é.
III
tudo era negro e vazio
e a palavra quebrou o silêncio
para que a Luz rasgasse o escuro
e o mundo das formas se visse.
IV
cada melodia é, tão só, ela e ela mesma,
cada palavra é, tão só, ela e ela mesma.
mas o silêncio é tudo, porque tudo contém.
V
e eu, que vejo o mundo através dos olhos que tenho,
sei que ele é um espelho do que sou.
- queres um mundo diferente?
pergunta-me do outro lado, o silêncio.
- queres?
então, muda!
ao eco dos tambores
quem me abraça?
quem me abraça?
quando o vento chega
turvado pelo ruido das botas dos outros
pelo anúncio metálico das suas espadas
pelo hálito pesado dos seus canhões
quem me abraça?
quem me abraça?
não sinto que as mães alheias
tenham filhos diferentes dos meus
quando a rosa dos ventos da Paz deixar de ser Rosa
também elas dirão
quem me abraça?
quem me abraça?
imagem daqui: http://valkirias.com.br/batalha-por-sevastopol-lyudmila-pavlichenko-e-participacao-feminina-na-guerra/
Admiráveis
são as mentiras que nos contam na cidade.
Que a luz apenas ilumina quem merece,
que a vida é como é, porque se não fosse não seria assim,
que o amor, a ser um estado, não será sólido nem líquido.
Foge Zygmunt, que te afogas.
Corre, voa, antes que a maré se cumpra.
Admiráveis e corroídos são os mitos urbanos.
Puras e castas as laranjeiras do meu pomar
que somam laranjas em contas de somar.
Que me digam mentiras.
Que me contem verdades.
Que me digam que o merecimento é fruto da escravidão
e que a razão da vida fica próxima do acaso.
Ou que o amor não existe. Só fingimento.
Quero lá saber!
Sou livre de acreditar.
Os vidros não turvam
o que está para além da janela.
O verde continua verde,
o céu azul continua céu
e amarelas as cearas maduras.
Para além da transparência
as crianças correm, imprevidentes,
tagarelas
mas seguras.
Assim correria eu.
Assim correria eu.
I
Quero que os velhos mais velhos,
toda a gente sem idade se entregue.
Que das portas abertas ao Tejo
se vejam os mistérios que perduram,
que se perdem e acham na corrente.
Porque é bela a cidade,
quente e majestoso o cio que ela verte.
II
Ó Lisboa das Tágides errantes!
Ó colinas que nem Safo, como Lesbos, cantou!
Olissipo que estás na fronteira do céu,
por onde Ulisses, atento e errante
navega os caminhos do mar.
III
Não!
Não canta quem desconhece
quantas as janelas que se abrem para o rio.
Quem não vê a espuma da manhã
nem as brumas que invadem as colinas
depois de uma noite fria,
não te pode cantar.
Por campos abertos
cheguei ao pomar das virtudes,
onde os frutos são de açúcar
e a fé das árvores se guarda nas sementes.
Com as primeiras chuvas
o restolho exalava o hálito da terra
e o sumo doce das cerejas
saciava a esperança dos que tinham sede.
E segui por veredas estreitas.
Cheguei depois às macieiras: ao limbo, às maçãs.
Lavei-as do primeiro pecado e elas,
grávidas de caridade, deram-se.
Maduras e perfumadas saciaram-me a fome.
I
São brancos e seráficos
os poemas que Hermes declama
aos úberes férteis da mãe.
São dádivas que Maya escuta,
escritos que grava no peito
onde mama o filho que tem.
São feéricos.
São feéricos os frutos e a luz de maio.
São primícias colhidas no sol dos pomares,
nos prelúdios fecundos do Templo.
No colo virgem das Vestais.
Encasacado,
encostou a cabeça à porta
e deu-lhe três cabeçadas, ao de leve.
Retirou do bolso o relógio e conferiu:
eram quinze e trinta.
Rodou a chave e saiu asinha
para a rua gelada.
Olhou para a negritude do céu
e concluiu que o passeio seria curto e frio.
E na breve caminhada que fez pela cidade
todos acertaram o relógios à passagem de Herr Kant.
Às quinze e trinta e um, o barbeiro da esquina
suspendeu a navalha e olhou para o cuco
que se escondeu depois da cantoria.
Às quinze e trinta e cinco a dona da casa de chá,
que ajeitava as iguarias na vitrina,
curvou a cabeça à passagem do filósofo
e bateu com os queixos na torta de laranja.
E lambeu-se, sorridente.
Às quinze e quarenta começaram a cair
gotas grossas, grossas gotas de chuva.
A intensão do passeio era muito boa
mas era imperioso regressar.
E Herr Kant pensou e decidiu,
asinha, caminhar de regresso ao lar.
E nunca mais as horas foram as mesmas!
Os relógios ficaram à sorte
e no resto do quarteirão
o tempo ficou incerto,
de cama, com o filósofo da razão à morte.
“O céu estrelado sobre mim
e a lei moral dentro de mim.”
A que horas, Herr Kant?
Releio o Alberto Canela (ou será Pimenta?)
e desde logo me surpreendo!
Então o homem não fala dos pequenos e dos grandes
e deixa no esquecimento os refinados e os refinadíssimos?
Que os pequenos aspirem a ser grandes, é vulgar.
Que os filhos da puta, ou de puta (sei lá eu,
porque o da e o de parece definir o estatuto
da patuleia e dos bem-aventurados),
aspirem o pó fino da filha da putisse
com a mesma naturalidade com que respiram
o ar que todos respiramos, é vulgaríssimo!
O que já não é vulgar é que nos digam
com aquele ar cândido de anjinhos que sabem pôr,
que se nos metem o dedo no cú é para nosso bem,
que sem eles, o que seria de nós
e que tudo conduzem em nome do bem comum.
Tanto o refinado como o refinadíssimo filho da puta
serão sempre bem-aventuranças em pessoa.
Sempre!
Não é que tenham recebido essa graça nas margens do Tiberíades.
Não. Não é disso que se trata.
Eles são bem-aventuranças
porque todos os filhos da puta são filhos de Deus.
Mas não sabem.
O pequeno difere do grande pelo tamanho.
Mas o refinado filho da puta difere do refinadíssimo
pela qualidade das filhas da putisse
que distribui Urbi et Orbi.
Dizia o filósofo antigo que os justos são serenos
e solícitos os injustos. Nada mais verdadeiro!
Não conheço refinado nem refinadíssimo filho da puta
que de dia não seja solícito e prestável,
que não fale espargindo simpatia.
E à noite?
À noite descansam os filhos da puta que são!
E valha-nos, ao menos, o sono que têm: porque também dormem.
É da sua condição!
Mas quando acordam, logo
ladram às caravanas dos outros
e uivam de raiva, de inveja e de ciúme.
É da sua qualidade!
O seu costume.
no limite, mesmo no limite,
dizer muito em poucas palavras
é dizer tudo em silêncio.
surpreende-me!
diz-me que nas tuas mãos,
arada pelos teus medos
a terra se mantém firme.
e deixa-me no ouvido, em segredo,
as palavras que te escapam
como areia pelos dedos.
pede-me, vá... pede-me!
a sombra do meu corpo
projetada no areal quente.
o contorno impreciso e ardente das dunas
no calor perfumado pelo sal.
imagem daqui: http://www.jf-samouco.pt/freguesia/paisagem/1898822_1407138986203664_1575736142_o/
Quando um ano cai e outro entra
as duas faces de Janus sorriem.
Cronos, no Lácio acaricia os tempos.
O tempo dos dias,
o tempo das memórias,
o tempo das noites frias.
Imagem daqui: secondselfbeer.com
convivo bem com as raízes,
letras
e palavras que tudo nomeiam.
sei que existem alfabetos estranhos,
símbolos
que estão fora do léxico,
escritos para quem não sabe ler
nem escrever, mesmo sabendo.
sim.
os degraus do Templo são planos
e olhos nos olhos nos vemos,
de coração contente e de braços firmes
na corrente que formamos.
sim.
sem vós, que faria eu aqui?
quando canto a alvorada
ainda tenho as asas húmidas do orvalho
que, puro, se condensa muito cedo
na orla das penas que me cobrem
a pele.
para além da escuridão que se esfuma
não sei que outras fronteiras
existem entre a noite e o dia.
não sei!
pergunto,
se a névoa que se levanta
mais os mistérios do vento?
se as nuvens salgadas que envolvem a praia,
mais a transparência do mar?
respondo
que nada disso é assunto das aves.
as minhas penas não são tristezas
nem condenações.
são plumas de enfeitar.
imagem daqui: http://wonderfulseaworld.blogspot.com/2012/03/aves-marinhas.html
I
encostei-me à entrada.
olhei para cima e vi projetadas no azul celeste
as barras firmes do portão.
como são altas, férreas e sólidas!
está fechado a sete chaves, pensei.
e eu aqui esquecido,
nos passos perdidos do paraíso.
II
não sei de nada.
ousarei as rimas que ouvi, cantadas no sul e a leste
pelas cigarras no lume do verão.
ouço-as tão cálidas,
térreas e pálidas!
vão assustadas no ventre das aves, pensei.
e tu ali, de braços estendidos,
indecisos.
imagem: ZP_Cicada from Borneo_© photographer Alex Hyde
está fora de moda o silêncio,
mas é bom estar calado.
penso assim porque a solidão,
filosofias à parte,
ladra-me como um cão de fila e diz-me
que fuja, das brigas e dos abutres
como o profeta do toucinho e o diabo da cruz.
sim.
se há assunto que não podemos deixar
entregues aos filósofos, assim
sem mais nem menos,
o silêncio e a solidão são dois
e julgo que há mais.
eu, deixem-me que vos diga,
não sei se estar só é estar sozinho,
porque estar sozinho é estar
numa solidão mais pequenina
do que estar só.
e depois, a beleza da solidão
está na intimidade das coisas belas,
que são belas porque são íntimas.
e o que sabem os filósofos
da minha intimidade?
tanto quanto eu sei das suas razões
que às vezes até se encontram com as minhas.
Eu sei que falarás por ti
porque ninguém pode falar por ninguém.
Por mim, e só por mim,
falo no cheiro da terra molhada,
do pão quente quebradiço na boca
e da farinha tisnada na ponta do nariz.
São horas Luís! Vem, que se faz tarde.
Eu sei que falo por mim. Só por mim.
Mas a manteiga a escorrer,
liquefeita pelas torradas,
traz-me de regresso os calções
e as nódoas das amoras
às pernas imberbes.
São horas Luís...vem, que já é noite.
E quando chegava,
ainda me lembro dos banhos
quentes e de esponja macia,
que nunca conseguiam lavar
a memória dos dias.
Por mim, e só por mim, falo.
São horas Luís... dorme, que já é tarde.
“À barca, à barca, Houlá!
Que temos gentil maré!”
E vós, por que rios navegais?
Em cada um dos rios em que navego
o meu barco dorme sonos tranquilos, sem sobressaltos.
Em sigilo vou, só por ir, ao sabor do destino das correntes
para estar, só por estar, no devir guardado
de um futuro clandestino que me pertence.
“À barca, à barca segura,
barca bem guarnecida,
à barca à barca da vida”
E vós o que guardais?
O que gosto de guardar!
As horas mais simples num simples segredo
que trago das margens obscuras da cidade,
para junto das colunas do cais.
“À barca, à barca mortais,
barca bem guarnecida
à barca à barca da vida”
E vindes só?
Na ideia que trazeis?
Quando tendes marcada a ida?
Ora, ora!
O que gosto de trazer quando não sei da partida!
Nada existe de mais banal que as coisas banais.
Venho sempre comigo mesmo e no bolso trago
os deuses do inferno,
os paraísos do diabo.
e quando eu quis cantar
disseste-me que não havia vento
que me levasse a voz.
e eu calei-me.
perguntei-te de onde corria o vento.
disseste-me que os caprichos do ar
são tão ínvios e frágeis
como livres e ágeis são as ondas do mar.
e eu calei-me.
perguntei-te de onde escorria a água.
falaste-me das gotas cristalinas,
do orvalho.
das lágrimas que se precipitam
de madrugada, tão límpidas na verdura chã.
e quando eu vi as aves brancas, suspensas no escuro
como luminárias, falaste-me no voo luminoso dos pirilampos.
e eu calei-me.
de onde vem a Luz ? perguntei-te.
do Oriente da Terra ou de Ti.
na imensidão o centro pode estar
em qualquer lugar, respondeste.
nenhuma palavra é inocente.
na conspiração das tormentas as palavras desfazem abrigos,
canonizam pecadores e santos.
ora caem gota a gota, ora em torrentes
que nos conduzem aos ralos das cidades.
é por aí que escoam as silabas, caem as palavras
e as frases ficam prisioneiras, no escuro.
nenhuma palavra é inocente!
esteja maduro o tempo
ou ainda verde a Liberdade
III
poderás até
beber o chá rubro da flor da Jamaica.
e com a xícara subir ao jardim
onde a terra em chamas se abre,
perfumada
como as flores que dizes tuas.
II
podes dizer-me que as dunas
são a luz e a sombra no deserto.
o antes e o depois ,
as águas que fervem
até que a cor perfeita se liberta
do perfeito karkadeh.
Imagem daqui:
https://www.pinterest.pt/pin/73535406397825574/
I
podes beber o chá
rubro dos hibiscos do Egipto
e com a xícara regar
as dunas que amas,
as areias que dizes nuas.
Não sei,
não sei se estou velho...
Não sei se estou velho
nem se estar velho é estar, como eu estou.
Há muito tempo, sentava-me no quintal
e via as brasas, as sardinhas e os pimentos,
soltarem o fumo ao calor do verão.
E a família feliz, como o prato chinês.
Não pensava no tempo assim.
Só na chuva, no sol e no vento.
E via as brasas do carvão até à cinza
e a presença de todos, como se ali estivessem
para estar sempre.
E a família feliz, como o prato chinês.
e fiquei ali sentado ao fim da tarde
com a água no peito,
quase no coração.
não.
não gosto de fazer promessas.
mas quebrarei o silêncio só com os remos
a caminho da foz,
a caminho da praia.
tudo o resto será a companhia das aves
e o rumor do vento nas margens.
como tudo é tão simples!
tão simples que os odores ribeirinhos
condensados, como perfumes estivais,
se deixam respirar nos contornos do rio
a caminho do mar.
não gosto de fazer promessas
porque sou mau pagador.
não gosto!
mas hei de remar assim
até que o sal se apodere da água doce
e a tarde encerre o dia atrás da noite.
Foto daqui: http://amata.anaroque.com/arquivo/2014/04/rio_arade
porque minha mãe caíu,
não sei de que paternidade sou!
cresci cedo no seu ventre
porque o frouxo Zeus no trono,
contente de sono, se destraiu.
foi de Hera que nasci.
ainda menino, empurrado caí ao mar.
e foi Tétis, a ninfa, que me guardou,
já imperfeito e couxo, ao lado de Aquiles.
de triste e fraca figura
cresci junto dos martelos e das bigornas.
dormia na forja das ferrarias
de todas as armas e armaduras
recolhidas nas armarias,
deitadas nos arsenais.
serei feio?
serei fogo?
serei tudo por Afrodite
que de Ares foi consolo!
serei ferreiro divino
das armas de Aquiles,
das flexas de Apolo.
da couraça de Héracles,
do tridente de Poseidon.
dos raios de Zeus,
do trono e da ascrava-pulseira
de Hera, minha mãe acorrentada.
sou Hefesto!
a fera que teceu as redes
onde dormiram Afrodite, Ares e Eros.
o soprador da forja das almas,
o ferreiro do Olimpo.
o vulcão de todas as metáforas.
VII
e ao sétimo dia
revelam-se todos os vocábulos.
é a poesia.
é ela que tudo destapa.
e nada escapa ao primeiro léxico
dos primo poetas que no banho,
na espuma das águas irmãs
do Tigre
e do Eufrates,
mergulham na palavra única.
era quando nem fala ainda havia,
porque Babel crescia entre zigurates
do tamanho da língua antiga:
que era una.
VI
repara bem no que te digo:
é uma pena que o Alegre
não escreva poemas menos sérios
e que os sermões do Vieira caminhem,
como loucos,
do zénite e dos cardumes
ao nadir e aos costumes.
tristes estão os escamudos na água!
mudos na terra
com a mudança os homens!
sem palavras!
Foto: LNM - Ericeira
V
ninguém escreve decassílabos aos telemóveis
e muito menos tragédias.
ei-los que tocam desgarradas
nas escuras salas de cinema,
onde todos os romances são possíveis
e todas as aventuras acontecem...
as grandes e as pequenas!
não oiço rimas quebradas
aos astros no firmamento,
aos peixes no mar
e aos homens na terra.
nem à tragédia de Camões zarolho
em guerra com as Ondinas,
aflito a nadar.
Foto: LNM - Margem Sul ao fim da tarde
IV
é uma pena que não se encontrem por aí
epopeias,
rimas ,
ufanos sonetos
aos pacíficos hipopótamos
que medram nos pântanos africanos.
enquanto nas margens do lodo,
já na savana,
as hienas olham
desconfiadas e nervosas,
safadas e sorridentes.
manhosas!
Foto: LNM - Nag Hammadi
III
sabes?
é uma pena que Pessoa
não tivesse escrito poemas
ao me-tro-po-li-ta-no,
como escreveu ao sino da aldeia dele.
não podia!
porque naqueles anos sombrios
em Lisboa não havia o caruncho das cidades,
nem o funcho crescia com aroma
de Liberdade.
Foto: LNM - Deserto
II
quem o escreve crê que a poesia,
como o resto,
deve ter por norma
certamente
o politicamente correto
na forma.
como se tudo na vida fosse contido e guardado !
como um engano bem escondido
no canto de quem não diz ou canta
lengalengas,
canções de embalar,
cantigas de amigo e fados.
Foto: LNM - Jerusalém - Jardim das Oliveiras
I
perguntas-me pelas palavras certas.
e eu não sei como encontrá-las,
não consigo dar-tas
neste poema.
vi escrito que há palavras
duras,
inqualificáveis,
feias
que a poesia recusa.
repara no que digo:
que a poesia recusa!
Foto: LNM - Jerusalém - Jardim da Oliveiras
O homem levantou-se lesto e nú
como fora posto no mundo,
chegou-se à janela escancarada
e ladrou para a Rua do Capelão
que é a rua de todas as virtudes e virgindades
que em todas as idades se perderam na Mouraria:
- Este caloooor faz-me ter saudades do friiiio...
Da esquina do Largo da Severa,
voz feminina rosnou baixinho
como se fosse uma cadela:
- Vai tomar banho que arrefeeeeeces...
E todos os dias de canícola o santo homem ladrava
e, como quem não quer, rosnava a santa mulher.
No pino do inverno,
quando chovia todo o santo dia
água gelada, fria, fria...
o homem levantava-se vestido:
de pijama de flanela atado às canelas,
peugas grossas de lã de ovelha
e barrete enfiado até às orelhas.
Abria meia janela e gania para a Rua do Capelão
que é a rua de todas as virtudes e virgindades
que em todas as idades se perderam na Mouraria:
- Este frio faz-me ter saudades do caloooor...
E arrastava o ó para que ouvissem como gania bem.
E aquele lamento, de quase esquimó,
subia e descia as encostas da cidade
até São Vicente, ao Beco da Mó.
Mas era da esquina do Largo da Severa
que uma voz feminina gania também:
-dorme de botija aos pééééés...
que aqueces por deeeez...
Na primavera e no outono
nem um nem outro ladrava, gania ou rosnava.
Ele abria e fechava a janela todas as manhãs: calado.
E ela à esquina feita virgem menina
vendendo a virgindade como podia
as vezes que conseguisse ao dia.
E à noite: era o fado!
Imagem daqui: http://permanentereencontro.blogspot.pt/2015_04_01_archive.html
Perguntaste-me:
como podem as mil e uma noites
chegar à eternidade?
Ao dia a dia das coisas menores que fazes?
À vidinha que tens?
É simples!
Basta acrescentar histórias às histórias de Sherazade.
Como?
Contaram-me que um velho muito velho
tinha nas mãos o dom da palavra:
batia palmas e soavam discursos e poesia!
Palavras e mais palavras saltavam-lhe das mãos
e, se a conversa fosse triste, até os dedos choravam.
O velho não podia bater palmas sempre,
porque as palavras das mãos eram mais sinceras
do que as palavras que dizia quando falava pela boca.
De inverno, quanto o frio pesado lhe caía em cima,
o velho batia palmas para ficar quente
e de entre os dedos ouvia-se o Pessoa
carregado das razões, do calor e do frio
que tinha e não tinha.
E às vezes Camões: “alma minha...”
E quanto mais quentes lhe ficavam as mãos
mais quentes eram as palavras que se ouviam.
Num dia de frio, de luvas calçadas,
ouviu-se a voz rouca e sumida da Florbela
que mal conseguia sair-lhe pelos pulsos...
“Se tu viesses ver-me hoje à tardinha,"…
E quando às batidas dava jeito de sapateado
e gestos de flamenco,
eram de Lorca as palavras que se ouviam.
Voz arrastada...
entre lamentações ciganas e o fado.
Num dia de calor o velho, de mãos suadas,
limpou as mãos humidas e bateu palmas para secá-las.
E Pablo Neruda saíu-lhe a cantar Tango
Viúvo, como o pai a um mês dele ter nascido.
Ah! Mas o velho também batia os pés!
Ficou famosa uma pateada no São Carlos
por conta do Castelo do Barba Azul.
Nada que se devesse ao Bartok,
que nestas coisas do canto as pateadas
vão mais para quem abre as goelas pífias
e regurgita fífias em forma de pranto.
No fim do primeiro e último acto
(que o compositor foi poupadinho),
toda a minha gente pateava a Judite e ele também.
E pela manga dos peúgos saíu-lhe o Ezra fanhoso:
“Arre! Já celebrei mulheres em três cidades,
Mas é tudo a mesma coisa;
E cantarei ao sol.”
Um dia, uma criança que estava à beira do velho,
sabendo daqueles seus dons pediu-lhe
que batesse palmas e pateasse ao mesmo tempo.
A algazarra foi tanta vinda das mãos
e de baixo, pelas perna a cima e de todo o lado,
que o coitado do velho caiu por terra!
E em dois dias foi enterrado.
Foto daqui:
haja ou não a loucura
que Erasmo elogia e outros cantam
seja o engano a luz permanente
que se acende no entendimento dos loucos
que e eu serei hoje e sempre a doçura
que fui
porque sou
porque olho a loucura nos olhos
e leio como poucos as palavras
que se lêm gravadas a fogo
na vida de quem está não estando
nos pensamentos de quem pensa
que há um jogo que se joga
fora do que seja humano
haja ou não haja a loucura
existirão sempre ocos elogios
aos moucos que percebem o mundo
como navios carregados só de lastro
e os outros
aqueles que o peso de tanta pedra
não sobrecarrega a cabeça nem os ombros
farão promessa de tábua rasa
do escuro e dos assombros
das loucuras e dos altos muros
das brazas
das quedas e dos tombos
e depois como no Livro
serás um
serás dois
no princípio e com o que houver
haja ou não a loucura
queiras ou não queiras
virá o dia virá a noite
serás homem
serás mulher
Imagem: Gilson Simabuku
Daqui: Elogio da Loucura
Nas margens de uma cidade perfeita,
um convento.
Mais de cem freiras e um padre!
Elas em penitência convicta
e o clérigo pastando o rebanho
de ovelhas mansas e devotas:
das lides divinas,
da moral de antanho,
da carne sem nódoas.
Quis o destino, ingrato,
que mesmo ao lado do convento,
no seguimento do adro e colado à capela,
existisse um palácio imponente
e que uma senhora muito liberal, alta figura, olhos de mel,
de nome Esperança e dada aos negócios,
o recebesse de herança para os seus ócios.
E fez do palácio um bordel.
Muito se rezava !
Cada qual ao seu modo e de muitas maneiras.
No convento todo o santo dia e à noite dobrava.
No palácio, de madrugada, até depois das bebedeiras
e quando o fado se cantava.
A madre superiora, lesta e asinha,
propôs ao bispo um protesto violento.
Mas sem resposta e com a pressa que tinha,
gizou com o padre e com as beatas vizinhas
mandar rezar uma dúzia de missas
para acabar com o bordel do lado.
E a todos mandou recado.
Na casa do ócio outras eram as intenções.
Acordava-se á noite para celebrar
o que no convento não se fazia:
o dar e o receber,
o pão e o vinho,
o amor e a vida.
Depois de muitas rezas e outras tantas missas,
de um quarteirão de petições ao bispo
e só de protestos mais de uma centena,
sem que o boldel dali se fosse
convidaram-se os fiéis para uma novena.
Ao nono dia, a meio do terço,
estavam reunidos na igreja os fiéis
e rezavam pela salvação das mulheres perdidas,
e pelo encerramento de todos os bordeis.
Pedia-se pela conversão da dona do bordel
ou que sobre ele caisse um raio divino,
quando desatou do céu, como nos trópicos,
trovoada, chuva e depois granizo:
como se as trombetas da queda de Babel
viessem em socorro do paraiso.
E com estrondo digno de nota
caíu um raio no palácio da má vida.
Para gáudio do padre, das freiras e devotas
fora raio divino mandado pela justiça suprema,
resultado de tanta oração e penitência
e daquela novena.
Esperança, senhora de bastantes atributos
e também de muitos segredos alheios,
atribuiu à novena aquele destino.
Demandou o convento, o padre e as freiras,
solicitou à justiça dos homens o castigo e pagamento
da reconstrução do palácio e dos aposentos
que por terra caíram por castigo divino.
E em tribunal insistiram os crentes
que desconheciam porque eram réus.
De que nada do que acontecera viera dos céus
por via das rezas, dos terços e da novena
que tinham acabado havia uma semana.
E o juiz ponderou e lavrou sentença,
muito espantado por gente de fé,
crentes convictos e rezadores de profissão
não acreditarem na intercepção divina,
por força da oração.
Enquanto que as mulheres da vida,
vendedoras de prazeres inconfessáveis,
casta de pecadoras dignas de Sodoma e de Gomorra
faziam profissão de fé, muito sentida,
na força das preces mais inefáveis
feitas por nove dias,
de seguida.
era fina a linha que tracei
invisível aos mais desatentos
depois de fazê-la com muito cuidado
fiz dela a fronteira entre mim e o fado
fiz dela o traço entre o céu e a terra
a vida e a morte
o amor e o medo
a paz e a guerra
era um fio de seda uma teia fina
depois um novelo uma Rosa divina
São assim,
os desejos que invadem os homens
quando na quietude do bem estar
se sentem impelidos a fazer.
O que os move?
Há quem diga que somos feitos para ser felizes e,
felizes, deixamo-nos estar.
Quietos,
tranquilos,
na esperança de que o estado de graça fique
para a eternidade.
Há quem diga que estamos aqui para festejar a felicidade.
Conseguindo-a, ficamos nela de pousio...
sem querer que ninguém nos cultive o corpo ou
abane a caixa dos pensamentos.
E o sentido do dever?
Onde fica?
Há quem diga que fazer por dever é fazer obrigado
e que a obrigação não é sinónimo de vontade.
Agimos e fazemos quando nos sentimos incomodados:
é antes disso que está a felicidade!
Como eu preciso de ver os barcos encostados à muralha,
acabados de chegar, ou prestes a partir.
Quem sabe? Quem me diz?
Como eu preciso dos meus olhos na água,
apressados, com a pressa que as ondas têm...
Já devia ter ido até ao cais
a que chegam todos os barcos depois do verão.
Mas ainda não fui.
Eu aceito.
Aceito, mas não sei por que não param os relógios em agosto,
quando o mar está chão, o sol visível e a areia quente...
Quem sabe? Quem me diz?
Já estamos em setembro,
o mês em que as sombras crescem enquanto o lume se apaga.
E eu já devia ter guardado a nudez para vesti-la
para o ano que vem, quando for tempo para despir a roupa
e regressar.
nas tuas mãos
o mundo
nas rugas que trazes
as sementeiras
e os arados que navegaste
na quietude
as pautas musicais nuas
das valsas caladas
que danças em silencio
ah!
escuta na multidão
a chuva que te corre no sangue
os sonhos que semeaste
Pai?
Por que são redondas as rodas
como os zeros e a minha bola?
Por que se chama círculo ao círculo
e não quadrado?
Por que não dizes que regresso a casa
quando vou para a escola?
Por que digo que corro quando corro
e não digo que estou sentado?
Por que me chamas rabino se estou de pé
mesmo quando estou quieto?
E há quem estude sapateado?
Se for avô porque não me chamam neto?
E não correm os rios para a nascente?
E se canta em Portugal o fado?
Que se diz solto quando sem rima?
Por que se chora de contente?
E estar em baixo não é ver de cima?
Filho?
Por que se vai do significante para o significado?
Sei lá !
do que eu gostava mesmo
era de ter aquelas certezas
que vejo a passearem-se pelas incertezas de outros
nunca consegui ser definitivo mas creio saber
colocar os pontos finais no sítio certo das frases
para depois respirar de peito aberto
e sentir a força que a cor das rosas me dá
do que eu gostava mesmo
era de ter aquelas certezas que a ignorância refina
as certezas lavadas pela água das doutrinas
pelos pios baptismos sem graça que não lavam
desgraça nenhuma
e dizem-me que por não ter certezas
não há nada em que possa acreditar
e eu que acredito nas dúvidas que tenho
eu que não somo conjecturas para fazer factos
que nem dou por certas as minhas incertezas
duvido das dúvidas que tenho e
como a negação da negação é a certeza afirmada
digo que a culpa de tudo é da palavra
porque sem ela em silêncio eu diria tudo
e não diria nada
do que eu gostava mesmo era de ter um canto
onde pudesse estar com aquilo em que acredito
com as luzes apagadas
e um fio sibilino de perfume caindo
despidos,
os lábios vestem-se de palavras.
a cada uma
os olhos fitam as portas que elas encerram.
e cada frase proferida é uma chave,
como se a saliva emergisse em fios de seda branca
até que o casulo, translúcido, se fecha.
e nós lá dentro!
prisioneiros do que dizemos!
quando quiserem que acredites
questiona
se te fecharem a porta
abre-a
e quando te disserem que não há uma estrela da manhã
acende-a
são inocentes os olhos que acordam
na fonte do princípio,
na origem das nascentes.
maculados os outros, que adormecem
na foz dos invernos.
no estuário dos tempos.
Foto: LNM - Janela - Silves
foram tantas as coisas que me quiseram ensinar
mas que eu não quis aprender!
quiseram que acreditasse que o mundo era como era
só por ter sido como foi.
e eu sentado com as pernas curtas, que nem chegavam ao chão,
repetindo para mim que não queria saber.
e do quadro negro, de dedo em riste,
gritavam-me que ser alguém era ser como os outros
porque os outros eram como deveriam ser.
e eu a não querer saber daquela sabedoria!
e da cátedra explicavam-me como se fazia a partir de um ponto
uma circunferência por natureza redonda,
mais um quadrilátero que até podia não ser quadrado.
e eu a não querer saber daquela geometria das figuras!
de pernas curtas que nem chegavam ao chão
tudo para mim era enfado, travessuras, imaginação.
criar é fazer emergir do nada!
do escuro tirar a Luz.
do silêncio harmonia.
do inolente o aroma e do insípido o sabor.
é tirar da noite o dia e do carvão o lume.
do cravo o odor.
da tua pele perfume.
. Perto
. Frágil