Quarta-feira, 29 de Dezembro de 2004
rio acima
percebo no recorte das águas
o incauto rumor das tuas mãos.
nunca os meus olhos
regressaram tão longe
nem ficaram de pousio
assim no horizonte.
Sábado, 25 de Dezembro de 2004
pudera eu despir-me aqui perante vós
que mesmo nu continuaria adornado
desta minha condição humana:
pedra e força bruta.
porque as faces mesmo lisas não deixam de ser rudes,
nem as arestas por mais perfeitas deixam de ser ríspidas.
pudera eu vir aqui fazer-vos
a critica da convicção pura
e falar-vos de tudo quanto sinto mas não digo.
pudera eu vir aqui expor-vos os argumentos
das razões que não sei se tenho
e de todas as opiniões que pari desde que me entendo.
pudera eu ser um homem sempre justo…
que as outras imperfeições carregá-las-ia de bom grado
no saco da minha consciência.
pudera eu dizer tudo isto e ser entendido,
e não estaria aqui convosco.
mas quis a fortuna que o Grande Arquitecto
permitisse que, no prefácio da narração dos tempos,
os homens nascessem brotando do chão.
quis Ele que na Idade do Ouro o Sopro Criador
se confundisse com as criaturas,
que o Homem fosse o guardião das cores,
o zelador de todos os ocres e pigmentos.
quis Ele dar ao Homem a sede autentica mais a divina figura.
também a ousadia, fundamento da Liberdade.
quis ainda a sorte que Prometeu nos desse o lume divino,
e que a caixa de Pandora, senhora de todos os dons,
se abrisse entornando contratempos.
desde então as ideias são como alaridos e esgrimas
e as frases soam a desconfianças bastardas.
rebuscamos no campanário das vozes e das prosas de Babel,
a Palavra que um dia dará forma à doutrina do entendimento humano.
catamos na multidão dos vocabulários,
nos mistérios dos catecismos,
no frágil talento dos nossos rudes critérios:
o Sopro Divino, Grande Alento, brasas de Luz a partir do nada;
a Harmonia das Esferas, caroço das perfeições possíveis;
os pedaços, na miragem de chegar ao Todo colando as partes.
dói olhar para um homem, vê-lo só a ele, e nem sequer todo...
dói procurar nas Borras da Fundição, olhos que vejam como os
[nossos...
dói encostar o ouvido ao búzio e não adivinhar o sabor do sal...
dói tanto...
mas no dia em que o céu se partir,
as tábuas da mecânica do mundo hão de peregrinar.
nesse dia estarei convosco, para guardá-las.
Basta-me!
Sexta-feira, 24 de Dezembro de 2004
sento-me à soleira do teu corpo
quieto na vontade
e meigo
nas ambições
encosto-me ao berço do tua voz
ao teu peito
de murmúrios tenros
e só eu sei
só eu sei
como adormeço
Quinta-feira, 23 de Dezembro de 2004
vejo arte forjada e gerânios
paredes que nascem do chão e sobem
direitas até aos beirais
não sei o que me detém
mas pressinto uma rede de luz difusa
ao largo de cada rua da minha cidade
Quarta-feira, 22 de Dezembro de 2004
grande ampulheta
que escoa tudo o que é efémero
em contínuas provocações e profusas brigas musicais
forja lendária dos cedros
cadinho onde foi escrita a roda da fortuna
pira onde ardem as intrigas e os enredos fermentados
no avatar de todos os ofícios e castas de fingidores
Terça-feira, 21 de Dezembro de 2004
riscos exactos
desenhos rigorosos
nas tuas mãos
as mesmas linhas que à noite descubro
coladas ao firmamento
Segunda-feira, 20 de Dezembro de 2004
1 . Atravessam-me suspeições
2 . Rodopiam as certezas
e o talento fica mudo por tal desconcerto
3 . Pior que isto só quando fui parido
4 . Quando deixei o conforto cálido e húmido
do vente da minha mãe
e enfrentei o barulho da engrenagem
5 . Do mundo a girar
Domingo, 19 de Dezembro de 2004
são duas as fantasias que me tentam
o aroma dos laranjais em flor
a delicadeza vivaz das laranjas
quando rebolam
hirtas
por isso quando eu morrer
quero ser semeado num quintal de laranjeiras
Sábado, 18 de Dezembro de 2004
nas águas do Ganges,
dóceis,
sujas de oferendas,
enxuguei as minhas culpas cristãs.
entrei como quem lavra a terra
e desfiz o caminho que o rio levava.
e senti que os meus pés descalços amassavam
húmus de brasas e cinza.
caíram na corrente os meus instintos mais vis
e fiquei órfão dos meus pecados,
em paz comigo
e sem esperanças
de errar no limbo em penitências vãs.
Sexta-feira, 17 de Dezembro de 2004
todas as conversões são ribeirinhas
exauridas as nascentes não há votos marmóreos
que não cheguem a baptismos de areia
tudo me segredaste
sem dares por isso
Quinta-feira, 16 de Dezembro de 2004
sim resisto
procuro barqueiro que me leve
ao chão através de rios colubreantes
mas detêm-me as coisas banais
e nem a cadeira sólida onde espero sentado
nem o talhe doce das pedras que trabalho
me levam em ascensão perceptível ou mística
à noosfera
sim resisto
Quarta-feira, 15 de Dezembro de 2004
há desertos que são jardins de pedra suspensos
efervesce vida nas areias
quando a lua regurgita a luz que o sol lhe entrega
e pela manhã
tórridas
regressam em caravanas abrasadoras canículas
Terça-feira, 14 de Dezembro de 2004
I
caminhei até à falésia
e sentei-me quando vi o mar aos meus pés.
entre mim e ele um precipício
feito de altura,
de areia
e de espuma leve e dispersa.
bem visto
não era água que eu via,
mas vida que desembarcava na praia
e ali ficava numa espera teimosa,
permanente.
II
há quanto tempo não vejo o horizonte?
já nem sei se permanece encostado ao céu,
ora acima
ora abaixo,
sempre ao sabor das marés e à cadência das lunações
Segunda-feira, 13 de Dezembro de 2004
quando me sentava à janela
uma claridade perfumada inundava
cada letra
cada palavra
cada frase
e toda a conversa que te escrevia
linha a linha
os meus dedos conversavam contigo
sem que desses por isso
e nem mesmo o silêncio das tuas respostas
me fazia crer que no futuro
num dia incerto
guardaria de vez as palavras comigo
não sei porque já não te escrevo
quando as linhas ainda se estendem como dantes
paralelas
equidistantes e negras nas folhas de papel
Domingo, 12 de Dezembro de 2004
Não consegues ver que os teus sapatos se abrem
em passos sempre maiores.
Sentes no entanto a urgência de andar e,
mesmo ágil e leve, o depois e o antes confundem-se
na medição súbita que fazes do tempo.
És veloz
És fugaz
És ligeiro
Queres na vida mais do que o compasso do tempo comporta.
Ele acontece certo,
sem precipitações no ritmo.
Tu aconteces brevemente.
Sábado, 11 de Dezembro de 2004
salpica
borrifa
e dança
que as ondinas mergulham na areia orvalhada
aquece
enxuga
e estima
que as salamandras são concubinas das luminárias
tece
lavra
e confia
que as sílfides entregam-te a verdade
Sexta-feira, 10 de Dezembro de 2004
ancas desnudas
intactas
sentadas na pureza dos teus pés descalços
a contraluz escurece a penugem macia da tua casca
doce
mesmo dócil
a verdura daninha não te invade o colo
latejante
ao ínfimo vestígio de mãos vadias
Quinta-feira, 9 de Dezembro de 2004
há-de sorrir o trevo
sempre que um desejo se levanta no corpo de quem passa
hão-de as tentações
ao sol
como as campainhas ondular incandescências
Quarta-feira, 8 de Dezembro de 2004
dos pontos ilimitados nascem traços
como das pedras
uma a uma
catedrais em esquadrias rigorosas
que importa
se no chão rasteiro se desenham as mágoas
e se aprumam as linhas que vemos no céu
que importa
se no desenho celeste não há imperfeições
e eu aqui procuro ser feliz
sim
que importa
Segunda-feira, 6 de Dezembro de 2004
O vosso corpo inocente
ri à cadência dos sonhos e de sedes caladas
Na cal da vossa criancice
passa-vos ao lado que sois cancioneiros
de um encontro do astro rei com a lua
Manuscritos do instinto e do amor
Domingo, 5 de Dezembro de 2004
no dizer dos velhos
as rugas são a ferrugem da pele
mas quem as desenha vê
mágoas
traços de carvão no barro do rosto
Sexta-feira, 3 de Dezembro de 2004
sempre
presumimos que ao sol se marcam os corpos
que à noite se desviam
mas é à luz do dia que irrompem as vontades
e se lavram os enganos nocturnos
Quinta-feira, 2 de Dezembro de 2004
Tu sentias a Primavera nascer dentro de ti.
Germinava-te então nos seios um desejo
que crescia, crescia e depois estourava espargindo pólen.
As heras enleavam-te os cabelos
e tu deixavas o corpo ficar no envolvimento
das folhas sadias e verdejantes.
Depois da tua fonte brotavam frescuras imensas,
manavam pirilampos incandescentes,
cresciam sedes e paixões instantes.