Terça-feira, 27 de Setembro de 2016

Chegou o calor.

Mouraria-04.jpg

 

O homem levantou-se lesto e nú

como fora posto no mundo,

chegou-se à janela escancarada

e ladrou para a Rua do Capelão

            que é a rua de todas as virtudes e virgindades

            que em todas as idades se perderam na Mouraria: 

            - Este caloooor faz-me ter saudades do friiiio...

 

Da esquina do Largo da Severa,

voz feminina rosnou baixinho

como se fosse uma cadela:

             - Vai tomar banho que arrefeeeeeces...

 

E todos os dias de canícola o santo homem ladrava

e, como quem não quer, rosnava a santa mulher.

 

No pino do inverno,

quando chovia todo o santo dia

água gelada, fria, fria...

o homem levantava-se vestido:

de pijama de flanela atado às canelas,

peugas grossas de lã de ovelha

e barrete enfiado até às orelhas.

 

Abria meia janela e gania para a Rua do Capelão

            que é a rua de todas as virtudes e virgindades

            que em todas as idades se perderam na Mouraria:

            - Este frio faz-me ter saudades do caloooor...

 

E arrastava o ó para que ouvissem como gania bem.

 

E aquele lamento, de quase esquimó,

subia e descia as encostas da cidade

até São Vicente, ao Beco da Mó.

 

Mas era da esquina do Largo da Severa

que uma voz feminina gania também: 

            -dorme de botija aos pééééés...

            que aqueces por deeeez...

           

Na primavera e no outono

nem um nem outro ladrava, gania ou rosnava.

 

Ele abria e fechava a janela todas as manhãs: calado.

E ela à esquina feita virgem menina

vendendo a virgindade como podia

as vezes que conseguisse ao dia.

 

E à noite: era o fado!

 

Imagem daqui: http://permanentereencontro.blogspot.pt/2015_04_01_archive.html

 


(c)Todos os Direitos Reservados Luís Natal-Marques às 12:55
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Segunda-feira, 12 de Setembro de 2016

Aplausos e pateadas!

oldman.jpg

 

Perguntaste-me:

como podem as mil e uma noites

chegar à eternidade?

Ao dia a dia das coisas menores que fazes?

À vidinha que tens?

 

É simples!

Basta acrescentar histórias às histórias de Sherazade.

 

Como?

 

Contaram-me que um velho muito velho

tinha nas mãos o dom da palavra:

batia palmas e soavam discursos e poesia!

Palavras e mais palavras saltavam-lhe das mãos

e, se a conversa fosse triste, até os dedos choravam.

 

O velho não podia bater palmas sempre,

porque as palavras das mãos eram mais sinceras

do que as palavras que dizia quando falava pela boca.

 

De inverno, quanto o frio pesado lhe caía em cima,

o velho batia palmas para ficar quente

e de entre os dedos ouvia-se o Pessoa

carregado das razões, do calor e do frio

que tinha e não tinha.

E às vezes Camões: “alma minha...”

 

E quanto mais quentes lhe ficavam as mãos

mais quentes eram as palavras que se ouviam.

 

Num dia de frio, de luvas calçadas,

ouviu-se a voz rouca e sumida da Florbela

que mal conseguia sair-lhe pelos pulsos...

“Se tu viesses ver-me hoje à tardinha,"…

 

E quando às batidas dava jeito de sapateado

e gestos de flamenco,

eram de Lorca as palavras que se ouviam.

Voz arrastada...

entre lamentações ciganas e o fado.

 

Num dia de calor o velho, de mãos suadas,

limpou as mãos humidas e bateu palmas para secá-las.

 

E Pablo Neruda saíu-lhe a cantar Tango

Viúvo, como o pai a um mês dele ter nascido.

 

Ah! Mas o velho também batia os pés!

 

Ficou famosa uma pateada no São Carlos

por conta do Castelo do Barba Azul.

Nada que se devesse ao Bartok,

que nestas coisas do canto as pateadas

vão mais para quem abre as goelas pífias

e regurgita fífias em forma de pranto.

 

No fim do primeiro e último acto

(que o compositor foi poupadinho),

toda a minha gente pateava a Judite e ele também.

 

E pela manga dos peúgos saíu-lhe o Ezra fanhoso:

“Arre! Já celebrei mulheres em três cidades,


Mas é tudo a mesma coisa;


E cantarei ao sol.”

 

Um dia, uma criança que estava à beira do velho,

sabendo daqueles seus dons pediu-lhe

que batesse palmas e pateasse ao mesmo tempo.

 

A algazarra foi tanta vinda das mãos

e de baixo, pelas perna a cima e de todo o lado,

que o coitado do velho caiu por terra!

 

E em dois dias foi enterrado.

 

 

 

Foto daqui:

http://www.3dartistonline.com/image/6845/old_man


(c)Todos os Direitos Reservados Luís Natal-Marques às 15:05
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Segunda-feira, 5 de Setembro de 2016

Loucura

1f1779_4030f92f48ee470085936ca74c2357a6.jpg

 

haja ou não a loucura

que Erasmo elogia e outros cantam

 

seja o engano a luz permanente

que se acende no entendimento dos loucos

 

que e eu serei hoje e sempre a doçura

que fui

 

porque sou

 

porque olho a loucura nos olhos

e leio como poucos as palavras

que se lêm gravadas a fogo

na vida de quem está não estando

nos pensamentos de quem pensa

que há um jogo que se joga

fora do que seja humano

 

haja ou não haja a loucura

existirão sempre ocos elogios

aos moucos que percebem o mundo

como navios carregados só de lastro

 

e os outros

aqueles que o peso de tanta pedra

não sobrecarrega a cabeça nem os ombros

farão promessa de tábua rasa

 

do escuro e dos assombros

das loucuras e dos altos muros

das brazas

das quedas e dos tombos

 

e depois como no Livro

serás um

serás dois

 

no princípio e com o que houver

haja ou não a loucura

queiras ou não queiras

 

virá o dia virá a noite

serás homem

serás mulher

 

Imagem: Gilson Simabuku

Daqui: Elogio da Loucura

 


(c)Todos os Direitos Reservados Luís Natal-Marques às 16:08
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